Literatura brasileira,
O coro dos vulcões
Com uma escrita vertiginosa, Veronica Stigger narra a a passagem do tempo e o silêncio de um mundo encoberto de lava
13set2024 | Edição #86 outNo momento em que começo a escrever essa resenha, segunda-feira, 9 de setembro de 2024, São Paulo tem a pior qualidade do ar de sua história. Não se vê o azul do céu faz pelo menos três dias. Segundo o site de notícias G1, a qualidade está “um nível abaixo do pior”, na escala que vai de boa a péssima. A fumaça encobre quase sessenta por cento do território nacional. É preciso que se faça silêncio. O mundo de portas fechadas.
Krakatoa, o novo romance de Veronica Stigger, começa quando todos os vulcões entraram em erupção de uma só vez, e depois o que houve foi o silêncio. É preciso que o silêncio se faça no mundo e, mesmo assim, quantas vozes é preciso ter para se fazer ouvir o coro dos vulcões? Não se sabe se por culpa da autora-narradora, que um dia prendeu uma borboleta com as mãos, ou se por um grau a mais de temperatura na Terra ou pelas correntes de vento, todos os vulcões entraram em erupção ao mesmo tempo. Todos os mil e quinhentos vulcões do planeta. Então fez-se silêncio, e deu para escutar.
“O som gerado pelos vulcões não lembrava em nada qualquer outro produzido pelo aparelho humano”. Carvão, gelo, água, fogo e petróleo cantam seus cantos, mas não é um canto, o coro dos vulcões. Não é fala, não é voz de corpo humano e também não se assemelha, “em nenhum aspecto”, a qualquer outro som de bicho. O coro dos vulcões também não é como o som produzido por mãos humanas, “o grafite riscando a folha em branco, o giz deslizando sobre a superfície do quadro verde, os dedos pressionando a tela do computador”.
Vertiginosa, a escrita não respeita as ordens que o cérebro envia, muda de tom a cada capítulo
Discreto, melancólico, o coro dos vulcões é a própria escrita, não a lava ardente, mas o livro escrito no Ermo, turvo, sombrio (título de outro livro de Stigger, publicado em 2019 ).
Vertiginosa, a escrita de Krakatoa não respeita as ordens que o cérebro envia, muda de tom a cada capítulo, não se explica, deixa que digam que pensem que falem os vulcões italianos (“se elevam e produzem um som nem grave, nem agudo”); os vulcões chilenos e os mexicanos ( “um som médio, mas diverso dos italianos, porque se encontram em círculos de fogo distintos”); os vulcões da Islândia, que percorrem a escala acústica do mais grave ao mais agudo. Além dos vulcões indonésios, tantos, os japoneses; os americanos e ainda os russos, que secundam os africanos. Etna, Mauna Loa, Ojo del Salado, Anak Krakatoa. E toda ejaculação.
Quem está no comando não são os dedos da escritora, nem da artista curadora, da viajante, brasileira, nem mesmo a natureza, mas os próprios vulcões:
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Os únicos atores com comunicação direta não com o que pode haver de mais alto e elevado, mas com o que há de mais baixo e profundo: a própria entranha da Terra.
Mas tem também os passos e os gestos humanos, fantasmas, na fronteira da vida e da morte, depois e antes do começo do mundo, a vida das gentes, da turma do colégio:
O que se vestia de bailarina virou polícia; o que tinha ideias revolucionárias, também; a que lavava o cabelo com leite, advogada empresarial […].
E tem ainda a vida do Sandro, “de cujo rosto e sobrenome ninguém se lembra”. Sendo essa uma das funções da literatura: lembrar do Sandro.
Tem monólogo do carvão: “Abaixo de nós, nada se mantinha íntegro”. Monólogo do petróleo: “Rastejo e sigo em frente. Não choro, nem me calo. Sou a música e sou a destruição”. Tem também o Colóquio no Mangue, a maior conversa entre o Sol (“que naquele mangue, era negro”), as folhagens (“que, naquele mangue, eram brancas”) e a preguiça (“que, naquele mangue, era mãe e morta”). E tem o cervo, papagaio e pássaro de fogo.
Escuta
Para escutar o som dos vulcões é preciso uma percepção aguda. Braços, pernas, a órbita da lua, as voltas da Terra e mesmo o Sol, e mesmo o tamanho do pé do rei, são marcações espirro, frente ao tempo-espaço de Gaia. Aqui mora o romance vulcão, saído da Terra, em linda edição da Todavia. A gente pega o livro nas mãos e parece uma caixa de bombons, antigo e oriental, a grande montanha, a água e o céu vermelho: Krakatoa.
O livro percorre tempos geológicos, mas também o tempo da unha, do cabelo crescer, da pessoa nascer, escrever livros, viajar para a Indonésia, encontrar pessoas, olhar o vulcão de perto. A vida humana também acontece, durante um período pelo menos, e Stigger trata também deste assunto. Tem encontro, amizade, viagem de amor, viagem de trabalho, encontro com vulcão. Tem o Victor, para quem o livro é dedicado, com quem Stigger esteve na Indonésia, junto com o Hugo e o Carlos. A gente sabe da viagem, era um encontro de literatura, quando a autora nem imaginava que, um dia, monitoraria vulcões. Nem que nunca mais ia ver o Victor. O tempo é matéria, e a escritora considera a enorme realidade: “o presente é tão grande, não nos afastemos” (Carlos Drummond de Andrade).
Entre os mil e quinhentos vulcões, Stigger vai de mão dada com o leitor, mas não como escritora que tudo oferece; pelo contrário, a escritora divide o trabalho com a gente, que monta o livro na medida que lê, li duas vezes, para compor a história, e a composição também indaga à causalidade: você existe?
Boa ritmista que é Stigger, o livro é cabeça de fósforo e lava. Irrompe, no coro dos vulcões, o espirro da vida aqui. Contar a história, escrever os nomes, contar os fatos sobre os vulcões, contar histórias engraçadas, partes da vida, partes históricas, também tarefa da escritora. Quero dizer que no livro tem colóquios, monólogos, diário, cenas teatrais; tem piada, narrativas tradicionais, notícias do Diário de Pernambuco e da Revista Marítima Brasileira, “copy paste” do Facebook.
Posso falar de coleção, posso falar das listas, posso falar de mapeamento, bagunça narrativa, cartografia, rizoma, mas é justamente essa a matéria de Krakatoa: as medidas são outras.
Para ouvir o vulcão é preciso ter ouvido de lobo. É preciso olhar para as pessoas, Hugo, Carlos e Victor, olhar para quando não sabíamos e para depois, quando o silêncio for tanto que vai dar para escutar.
Desemelhança
Termino a escrita na quarta-feira, 11 de setembro. No dia anterior, o Brasil registrou 5.132 focos de incêndio. Todos os seis biomas do Brasil registraram a incidência de fogo.
O coro dos vulcões é uma outra coisa, é dessemelhante. E na dessemelhança, Stigger nos dá a escutar:
Qualquer comparação seria imprecisa, porque não parecia com nada que conhecemos. Mesmo assim, continuarei tentando dar conta do que ouvi.
Canto segredo, forjado nesta terra encoberta.
Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024.
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