A Feira do Livro, Política,
Quem criou a existência do Brasil
Artigos escritos ao longo de quarenta anos pelo intelectual negro Edson Lopes Cardoso escancaram a violência racial no Brasil
25maio2022 • Atualizado em: 12jun2024 | Edição #58Vamos amigo lute!
Vamos amigo, ajude!
Se não, a gente acaba perdendo
o que já conquistou…
Lili – Edson Gomes
Nada os trará de volta é um documento com o poder de incendiar corações e mentes em um ano tão decisivo como este. Ainda que o livro fale de vários momentos precedentes, tudo nos leva ao agora, quando o racismo ainda domina o imaginário e preserva poderes coloniais. A obra reúne 151 artigos escritos ao longo de quase quarenta anos por Edson Lopes Cardoso, nosso mais nobre cavaleiro, segundo a filósofa Sueli Carneiro, outra combatente antirracista.
Nada os trará de volta: escritos sobre racismo e luta política, de Edson Lopes Cardoso
O projeto defendido por Edson Cardoso é o de Palmares, reivindicando e relembrando o passado e olhando para o futuro, sem deixar de se preocupar com as necessidades do presente, que vão do combate à fome a lidar com a violência policial. Palmares é o que impede o apagamento da nossa identidade coletiva, a nossa memória.
Do período ditatorial ao medo pós-pandemia, Edson Cardoso olha de maneira crítica para a nossa realidade. Em artigos publicados em veículos como Ìrohìn (jornal do movimento negro fundado por ele em Salvador) e Folha de S. Paulo, ele traz à tona como o combinado social tem uma raiz apodrecida em que se ambiciona garantir privilégios.
A pele dos esquecidos é preta e parda, e seus conhecimentos desprezados podem ser a riqueza da humanidade inteira. Edson Cardoso, como jornalista que é, retrata momentos importantes da nossa história, como marchas, debates midiáticos, falas em Brasília, episódios que ele testemunhou e organizou enquanto militante. Em cada texto, dá as mãos a intelectuais que colocaram o assunto racismo na mesa: “Um troço entranhado, profundo, que quer impedir a todo custo a continuidade da vida dos descendentes daqueles que ‘criaram a possibilidade de existência do Brasil’”, ao lembrar de Guerreiro Ramos.
Dividido em cinco partes, o livro trata do movimento negro, da denúncia do genocídio negro, da incidência política, do jornalismo e do imaginário. Samba com Monteiro Lopes (o primeiro deputado federal negro e com discurso racial afirmativo do Brasil), Drummond, Machado de Assis, Luiza Bairros. Busca compreender a movimentação de organizações negras nos partidos e nas Nações Unidas, e denuncia Folha, Veja e Globo por serem coniventes com o racismo.
O autor embasa reivindicações antirracistas na política, na educação, na segurança, na mídia e no sistema de Justiça. Se podemos acessar as ideias de Juliana Borges, Djamila Ribeiro, Renato Noguera e tantos outros, é porque antes tivemos Edson Cardoso, que também só pôde travar essa batalha graças às gerações anteriores do movimento negro: José Correia Leite, Esperança Garcia, entre muitos outros.
Representações
As caricaturas que Chico Anysio fazia de personagens afro-brasileiros na forma de atores brancos pintados de preto com perucas e de pais de santo estereotipados são representativas do olhar desumanizante colocado sobre a negritude. Edson alerta, em diferentes momentos da história, que esse tipo de representação alimenta uma leitura coletiva não falada e um racismo silencioso.
A jovem democracia que temos sempre se beneficiou da negritude, tratando-a como objeto
O livro também aborda a ausência dos negros na televisão brasileira, quando a internet ainda era algo para poucos e a seara do debate público era menos democrática do que agora. Tempos em que o que era dito não buscava curtidas nas redes sociais, mas mudanças concretas: “No Brasil de hoje, quando o movimento negro diz que pardos e pretos são negros e constituem a maioria da população brasileira, está menos interessado na descrição da aparência física do que na organização política desse segmento superexplorado. A designação, o ato de nomear, em si, encerra um princípio ativo de poder. É também um ato político‑organizativo”. E completa afirmando que a disputa não é uma nomenclatura, mas um conjunto de termos mais ou menos peculiares ou apropriados a nossas relações raciais. Trata-se, na verdade, de dimensionar um instrumento de ação política.
Nada os trará de volta escancara que a nossa permanência aqui não foi um acaso, mas estabelecida por passos dados por Zumbis e Marielles, assim como por Marias, Joões, Evaldos, Marizeths, Cláudias, Valérias, pessoas comuns que criaram seus modos próprios de sobrevivência em uma realidade que desconsidera nossos anseios, demandas e subjetividades.
Casos como os de João Alberto, morto pelo segurança do Carrefour, ou de Pedro Gonzaga, no supermercado Extra, não são novidades. Antes deles, Januário Santana foi acusado de roubar seu próprio carro num estacionamento do Carrefour em São Paulo — “a cara não nega”, diziam os seguranças ao abordá-lo —; nada foi feito e o racismo nessas redes levou a assassinatos. Causa assombro a palácios, partidos, empresas e parcelas de mentalidade embranquecida que a população negra tenha autonomia. A camada de baixo é negra, no crescimento ou na recessão. Companheiros de luta na juventude e na vida adulta de Edson aparecem a todo momento no livro, como Luiz Orlando, criador de uma biblioteca ambulante em Salvador, em 1968.
Se vemos nos últimos anos um ataque permanente da Fundação Palmares, é porque essa instituição se situa dentro da estrutura e da história oficiais que foram sempre negadas pelos palácios, uma cidadania nunca dada em plenitude aos herdeiros do quilombo. A jovem e recente democracia que temos sempre se beneficiou da negritude, tratando-a como objeto, mão de obra e recurso sem valor, mas que é indispensável ao cotidiano das cidades. Esse mesmo racismo rejeita uma reparação histórica e o acerto de uma dívida de séculos, seja pelas exigências da Conferência de Durban ou do Estatuto da Igualdade Racial.
Espírito de combate
Edson Cardoso também dedica muito da sua obra a analisar a imprensa, como no caso em que o Estado de S. Paulo atacou a mobilização de milhares de pessoas, em 14 de agosto de 1986, no enterro de Mãe Menininha do Gantois, a mais famosa ialorixá da Bahia. O jornal paulista tachou a reverência à sacerdotisa, cujo funeral atraiu uma multidão em um cortejo pelas ruas de Salvador que durou três horas, de elemento que atrasava o progresso do país. Segundo o editorial, as religiões de matriz africana seriam “conceitos culturais que datam de antes da existência da civilização”. Esse texto é exemplo de racismo religioso, o que não seria mais aceito — pelo menos nos autos — dois anos depois, quando a Constituição afirmou que racismo é crime.
O racismo é a camada resistente que serve de base hoje aos apelos hipócritas em defesa da igualdade jurídica e outras pérolas daqueles que, diante do ativismo intenso e dos avanços da consciência social, tentam disfarçar sua visão eurocêntrica da história, sentencia Edson.
Entre os textos mais recentes, estão os que trazem reflexões sobre os governos do Partido dos Trabalhadores, que eram cobrados para ter maior participação do movimento negro na formulacão das políticas públicas. Rigorosamente, não havia debate no Congresso Nacional sobre desigualdade racial e racismo. Audiências públicas e seminários eram sistematicamente esvaziados, com raras exceções. O orçamento para a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Fundação Palmares, entre outras entidades de combate ao racismo, assim como as demandas da população negra, não era devidamente contemplado por ministérios como os da Saúde, Educação e Economia.
No governo Lula, o autor sinalizou que o movimento negro precisava ter uma bancada de parlamentares
Ainda no governo Lula, Edson sinalizou que o movimento negro precisava ter uma bancada de parlamentares, um lobby organizado contra uma engenharia sustentada pelo capital financeiro de setores que negam o racismo, inclusive o dos meios de comunicação. E isso vem acontecendo com o trabalho de organizações como a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos e a Coalizão Negra por Direitos, que estiveram em Brasília no mês de maio cobrando atenção para as reivindicações da Carta de Olinda, fruto que agora ganhou forma nos Comitês Antirracistas.
Monteiro Lopes, Benedita da Silva, Paulo Paim, Marina Silva, Marielle Franco, Macaé Evaristo, Taliria Petrone, Vilma Reis, Douglas Belchior são outros nomes que aparecem no livro. Eles agora cobram de candidaturas à esquerda um posicionamento real diante das pautas do povo negro.
Em 2008, quando a Folha publicou um posicionamento contra as cotas raciais, o autor perguntou: “Na redação da Folha e de outros grandes jornais, quantas pessoas têm pele escura e cabelo crespo?”. Apenas recentemente a Folha criou medidas que atentam para o debate racial. O próprio Edson Cardoso só publicou um texto no jornal há pouco tempo. Ainda assim, a imprensa brasileira segue fazendo coberturas que alimentam o ódio ao negro ou praticam o chamado novembrismo — falar da questão racial somente no mês da Consciência Negra. Além dos conselhos e processos seletivos direcionados, é necessário modificar as práticas de quem ocupa lugares de poder, assim como criar uma cultura de trabalho antirracista e respeitar as contribuicões de intelectuais negros para o debate público.
Chegamos até aqui por conta própria e estamos por conta própria. A nossa maior sabedoria não está à venda, não cabe em um texto ou em uma pintura, em um produto de artesanato ou audiovisual. A nossa maior riqueza é sermos nós mesmos. O compromisso do movimento negro é superar um quadro de profundas desigualdades. Temos muito que avançar na responsabilização coletiva, em ações reparatórias e afirmativas nas empresas, em quadros de defensores públicos, em concursos para juízes e como âncoras de tv. De 302 universidades avaliadas pelo Observatório da Branquitude, 294 têm reitor branco. As cotas para alunos são só um ponto de partida.
Além das mazelas da pandemia e dos governos exterminadores de futuros e comprometidos com o mercado, a sociedade brasileira precisa se comprometer a mudar o quadro social que lega aos negros a subcidadania. Edson Lopes Cardoso, em mais de setenta anos de vida, viu muito e nos presenteou com Nada os trará de volta, um guia para que nossos passos possam ir ainda mais longe.
Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.
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