Política,

A mulher do fim do mundo

Biografia resgata trajetória de Sueli Carneiro, figura essencial para entender o feminismo e o movimento negro no Brasil

01jun2021 | Edição #46

O feminismo deve muito a Sueli Carneiro. Em 2002, durante uma entrevista para a revista Caros Amigos, ela proferiu a frase “Entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta”, da qual sai o título da biografia encampada agora pela jornalista Bianca Santana. A obra trilha a caminhada da filósofa a partir de suas lutas em setenta anos de vida e quatro décadas de construção do movimento de mulheres negras. Ao lado de Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, a biografada é uma das principais intelectuais do movimento negro brasileiro. 

O prólogo do livro contextualiza o encontro de Sueli com Abdias no Tribunal Bertha Lutz, evento de 1982 que buscava sensibilizar as pessoas contra a discriminação de gênero. Em seu discurso, o fundador do Teatro Experimental do Negro incorporou a voz das mulheres negras. Quando já encerrava a sua fala, uma jovem da plateia dirigiu-se a Abdias e afirmou que aquele discurso não seria mais necessário, porque elas, as mulheres negras, estavam chegando.

E elas chegaram. Apesar das condições adversas impostas pela sociedade, pela academia e pelos diferentes campos de atuação que colocam as mulheres negras para escanteio, ou em uma posição de minoria, elas superam essa tentativa de apagamento com suas trajetórias. Ao lado de Sueli Carneiro — que fundou o Geledés Instituto da Mulher Negra em São Paulo em 1988 — caminham, há décadas, outras intelectuais, como Jurema Werneck, Lúcia Xavier, Nilza Iraci, Nilma Bentes, Regina Adami, Luiza Bairros e tantas outras.

Assim como Elza Soares no clipe da música “A mulher do fim do mundo” (2017), produzido por Eryk Rocha, Sueli refunda esse universo e possibilita outras existências a partir de seu legado de ideias que são passadas a Bianca Santana, Djamila Ribeiro, Márcia Lima, Anielle Franco e a uma nova geração de coletivos de mulheres negras. Trata-se de uma resistência muito custosa, dessas que são a base da pirâmide social brasileira, como as mães da Praça de Maio, as mães dos mortos na Chacina do Jacarezinho, no Rio de Janeiro (ocorrida no último dia 6 de maio) e a força das Yabás, as orixás femininas. 

Articuladora

Bianca resgata a vida de Sueli desde seus ancestrais. Organiza na história pessoal da filha de Eva e José Horácio o que foi negado a toda uma coletividade, por meio da trajetória de seus avós, bisavós e amigos da juventude.

Sueli nasceu em 1950, na capital paulista — seu pai era mineiro e migrou para São Paulo. Na cidade, ela viveu em diferentes bairros, como o Bixiga, onde se casou com Maurice Jacoel, companheiro de militância no curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e pai de Luanda, sua filha única. Na faculdade, encontrou outros militantes, como Miltão, fundador do Movimento Negro Unificado (MNU), e ampliou sua consciência política, despertada havia muito pelas vivências da família Carneiro.

Sueli testemunhou a fundação do MNU em 1978, ainda que na época não fosse uma figura pública. Após alguns anos, ela passou a ocupar cada vez mais uma posição de articuladora das mulheres negras, construindo agendas de políticas públicas, compondo conselhos e seguindo trajetória acadêmica, até se formar doutora em filosofia da educação pela USP.  

Em 2010, Sueli Carneiro foi ao STF, onde defendeu a política de cotas raciais nas universidades brasileiras

Bianca narra essa trajetória com a liberdade de quem passou os últimos três anos acompanhando e entrevistando familiares, amigos e companheiros de luta, além da própria biografada. Bianca é militante da UNEafro, organização de cursinhos populares em São Paulo e uma das principais entidades da Coalizão Negra por Direitos. Já escreveu outros livros, como Quando me descobri negra (Sesi-SP, 2015), além de ter sido a organizadora de Vozes insurgentes de mulheres negras: do século 18 à primeira década do século 21 (Fundação Rosa Luxemburgo, 2019). Ela também é a diretora da Casa Sueli Carneiro, inaugurada em 18 de maio, um espaço que pretende disponibilizar a biblioteca e o acervo documental da biografada — devido à pandemia da Covid-19, por enquanto, o projeto se concentra no espaço virtual, mas uma equipe já trabalha em futuras visitas presenciais à casa onde Sueli viveu por décadas.

Sueli Carneiro esteve na fundação do Coletivo de Mulheres Negras em São Paulo, em 1983, e seus passos foram se tornando cada vez mais incisivos na luta contra as opressões vividas desde antes da ditadura, quando viu companheiros de longa data serem perseguidos e sofrerem com o regime militar.

Em 2010, devido à discussão sobre a política de cotas raciais, Sueli Carneiro foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) e sustentou o que veio a garantir o acesso ao ensino superior para milhares de jovens, fruto de anos de luta do movimento negro. Aos setenta anos, Sueli Carneiro vive uma vida a pleno vapor. Ao longo dessa caminhada sempre fez questão de reforçar que a sua vida não é só dela, mas sim uma construção coletiva.

Em 2019, Angela Davis esteve no Brasil, onde fez questão de encontrar Sueli Carneiro, para reverenciar as feministas negras do país. Davis chamou a atenção dos leitores e do mercado editorial nacional, que não publica suficientemente autoras negras brasileiras, mas que se concentra em obras de nomes estrangeiros como as da própria Davis e as de bell hooks e Toni Morrison, por exemplo. São todas autoras necessárias, mas não estão conectadas diretamente à realidade brasileira, como acontece com Sueli, Lélia, Beatriz Nascimento, Mãe Beata de Yemanjá e tantas outras. 

Continuo preta serve como um espelho para as novas gerações de mulheres que, cada vez mais, se organizam, sejam elas domésticas na luta pelos direitos trabalhistas, sejam elas jovens que acabam de entrar nas universidades, onde denunciam a ausência de um corpo docente formado por professoras negras. A obra revela uma heroína contemporânea, não por vontade própria, mas por força do destino e da realidade que sempre cercou Sueli Carneiro.

Quem escreveu esse texto

Jefferson Barbosa

Jornalista, membro da Coalizão Negra por Direitos, Global Fellow da Fundação Ford, foi fundador dos coletivos PerifaConnection e Voz da Baixada e autor de A Mãe do mundo: vida e lutas de Mãe Beata de Yemanjá (Malê, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.