Ciências Sociais,
Ensinamentos imortais
Em dois ensaios, Ailton Krenak se coloca no lugar da floresta para refletir sobre o mal-estar contemporâneo
01fev2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #78Primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras, no final do ano passado, a imortalidade de Ailton Krenak não vem da cadeira da academia, mas da ancestralidade que ele conscientemente exerce no presente, como diz o intelectual quilombola Nêgo Bispo, num exercício da geração-avó passar seu conhecimento à geração-neta. Essa é a liga de seu livro mais recente. Um rio um pássaro reúne dois textos que conectam o discurso do líder indígena dos anos 80 com suas reflexões de 2023 — e a previsão de que muito daria errado se os povos da terra não fossem ouvidos.
Em Um rio um pássaro, Ailton Krenak argumenta que a neutralidade reforça privilégios e compromete a distribuição de afetos
O céu ainda não caiu, como sugere outro líder indígena, Davi Kopenawa Yanomami, em um de seus títulos mais conhecidos, mas as mudanças climáticas e a preocupação com o presente e o futuro da humanidade persistem diante de desastres como a fome, pandemias, altas temperaturas, escassez de água e uma carreata de poderosos tentando se salvar às custas dos mais pobres (vale dizer: negros, indígenas, moradores de periferias, em sua maioria no Sul Global).
Na primeira parte do livro, Krenak reúne reflexões feitas durante a expedição realizada com o fotógrafo japonês Hiromi Nagakura pela Amazônia. As incursões incluíram a terra dos ashaninka (entre Bolívia e Acre), dos yawanawá e seus seringais (oeste do Acre), dos yanomamis em Roraima e dos huni kuins (entre Peru e Acre). Tal qual o Mestre Bispo, o Ailton criado na beira do Rio Doce também não sabe ficar na cidade sem viver contrariado.
O que fez Nagakura buscar Krenak para essa viagem foi o discurso do líder indígena em 1987, na Assembleia Constituinte, defendendo a autonomia dos povos originários. Essa defesa era vinculada à organização coletiva, na época à União das Nações Indígenas, e ecoa até hoje na resistência à hidrelétrica de Belo Monte, à base aeroespacial que busca detonar o território de Alcântara ou à sanha fóssil que representa a exploração na Foz do Amazonas. Esse eco é visível no diálogo com Txai Suruí que, na orelha do livro, exalta o labiway (grande líder em tupi-mondé).
No livro, Krenak afirma ter deixado a política para trabalhar nos pequenos problemas que surgem todos os dias, concentrando seu esforço na continuidade da transmissão do conhecimento, como um herdeiro que deseja compartilhar a beleza. Ele se coloca no lugar na floresta e não apartado dela:
O cajueiro tem uma vida de seiscentos anos, quando sentamos a seus pés escutamos sua história de vida e seus cantos, a civilização ocidental não só veio desrespeitando os meus ancestrais como pisoteou os seus valores.
Há trinta anos, ele diagnosticava o quanto as cidades estavam deterioradas e o quanto a vontade de dominação do outro e o desapego à memória nos tira da mente o poder ancestral; criticava a concorrência para registrar patentes, a clonagem, a corrida armamentista e a conquista do espaço. Enquanto isso, dos yanomamis ele resgata a dança; dos krenak, os espíritos das festas; dos huni kuins, a relação com a floresta — e em todos esses povos as tradições se cruzam. Krenak fala do tempo de abundância vivido e entendido nas comunidades tradicionais e do tempo de escassez cultivado pelo ocidente, pelo homem branco e por todos que pactuam com o capitalismo.
Ele nos mostra como, na cidade, perdemos a capacidade de nos encantar com a beleza
Na segunda parte do livro, “Umachoeira”, ele mostra como, na cidade, perdemos a capacidade do encantamento com a beleza do entardecer, como o amor e a criatividade são tragados pelo caos e pelo conflito. Krenak também discorre sobre a questão da neutralidade — e como ela é perversa para um modo de vida compatível com o bem-viver, quilombismo, teko porã ou qualquer modelo sustentável. Ele argumenta que a neutralidade reforça privilégios, compromete a distribuição de afetos e que, para combatê-la, é preciso transpor fronteiras culturais, geopolíticas e econômicas.
Ensinamento contracolonial
Em texto para a exposição Até a Amazônia, curada por ele com fotos de Nagakura, Krenak nos diz:
Se nos permitirmos descansar o corpo na natureza, todo o universo passa a trabalhar a nosso favor. para pescar é preciso do apoio do espírito da água, é preciso negociar com este espírito. assim como o vento que carrega sementes, a água também carrega as suas sementes. a nova vida que nasce carrega consigo a memória do antigo. é o dinamismo que miscigena o velho e o novo, assim é a vida.
O mais importante ensinamento contracolonial que talvez esteja sendo desperdiçado é que os povos da floresta sabem construir tudo que é preciso para a própria vida.
Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.
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