Teatro,

Peça de Otavio Frias Filho tem montagem inédita

Tendo como protagonista o faraó mais célebre da história, texto tece uma relação entre o Egito Antigo e o socialismo soviético

09ago2019

“Ele foi considerado reacionário, místico, pedante, derrotista, desprovido de força dramática, filosófico no mau sentido do termo, e houve consenso de que seria virtualmente impossível encená-lo”, escreveu Otávio Frias Filho (1957-2018) em nota a Tutankáton, texto de 1990 que marcou sua estreia como dramaturgo. Neste mês em que se completa um ano da morte do diretor de redação da Folha de S.Paulo, a peça é levada pela primeira vez ao palco, no Sesc Avenida Paulista, e ganha nova edição em livro pela editora Cobogó.

Escrita em 1990, seis meses após a queda do Muro de Berlim, a história tem como protagonista o faraó mais célebre da história: Tutankáton (ou Tutancâmon), cuja tumba foi descoberta praticamente intacta, em 1922, com uma grande quantidade de relíquias, incluindo sua máscara mortuária. Ele é interpretado na montagem pelo ator Samuel de Assis. “O rei Tut é um ícone pop. Se você pesquisar por 'faraó' nas imagens do Google, 90% dos resultados serão de sua máscara mortuária”, diz Mika Lins, diretora da peça.

Lins conheceu o texto na década de 90, quando ainda era atriz, e diz considerá-lo um dos melhores escritos em língua portuguesa. “Eu gostava tanto da peça que sabia um trecho — o da cena da vidente, na abertura da peça — de cor”, conta. Em 1996, quando conheceu o autor, ele achou graça. “O Otavio tinha uma coisa maravilhosa que era dar liberdade total para trabalhar com o texto dele. Essa era uma de suas grandes qualidades: ser uma pessoa radicalmente a favor da liberdade. Ele era muito crítico, muito sincero, mas com um jeito de trabalhar muito livre”, diz.


Réplica da máscara mortuária de Tutancâmon no Museu Egípcio, em Cairo

Uma história atemporal

Essa liberdade nem sequer seria necessária para a edição do texto, que, segundo a editora Isabel Diegues, teve poucos ajustes — “precisou apenas de uma revisão simples, formal”. Para ela, a recepção da obra hoje certamente será diferente daquela de 1990, quando de sua primeira publicação, por causa do distinto contexto político: “É uma história de poder, disputas políticas, manipulação e crenças religiosas, que revela algo sobre a natureza humana e suas contradições. Trata de questões inerentes à história da humanidade, mas que ficam mais agudas e latentes em certos momentos políticos, como o que o mundo vive hoje”.

Para Diegues, o Brasil atual é “o retrato do caos, do desmonte, da falta de empatia com o outro e da disputa de território pela arrogância, pela violência e pela eliminação do diferente”. Segundo ela, não é um cenário exclusivamente brasileiro, já que o mundo passa por um momento de “colocar à prova tantas conquistas humanistas e se radicalizar como um lugar de vencedores e vencidos, de poderosos e desprovidos“. Para ela, Tutankáton retrata justamente esses embates e disputas de narrativas, o que faz dele um texto extremamente atual.

É a opinião também de Mika Lins, para quem o texto, como um bom clássico, conversa com diferentes épocas: “A revolução de Aquenáton, que fez com que o Egito ficasse monoteísta por uns bons anos, foi uma revolução de cima para baixo. Ao mesmo tempo que modernizou algumas coisas, matou gente e obrigou as pessoas a abandonarem seus cultos originais — e a gente está sempre, sempre à beira disso”. 

Escrita há quase trinta anos, durante o colapso do bloco comunista, Tutankáton, segundo Diegues, é uma peça “sobre homens tentando fazer valer suas crenças a despeito de ter escuta para as diferenças, para o outro. É uma peça sobre mundos desabando e a falta de esperança numa possível reconstrução“. Mas, para a editora, a deflagração dessa distopia é também um modo de, a partir do nada, da destruição, buscar caminhos: “Encerra-se num ponto em que, a partir dali, é preciso inventar o novo”.

Mistura do Brasil com o Egito

Levar ao palco uma história que remete a uma época da história que já foi exaustivamente retratada não deixa de ser um desafio — como já apontava o próprio Frias. “Se algum diretor se atrevesse a montá-la, seria tentado a vestir os atores de Cleópatra e quem sabe até enfiar uma dança do ventre entre as cenas”, escreveu. Não foi o caso de Lins, que, ciente do desejo do autor de evitar estereótipos, decidiu retratar o que chama de “seu próprio Egito”.

“A representação do Egito tem uma coisa kitsch, ligada aos filmes de Hollywood, às novelas bíblicas da Record, às festas de carnaval… eu queria criar um Egito novo, inventar o nosso próprio Egito, com liberdade”, conta a diretora, que optou também por um elenco majoritariamente negro — afinal, a história se passa na África. Integram o elenco, além de Samuel de Assis como protagonista, Bete Coelho (a vidente) Augusto Pompeo (Fei, o juiz da corte), Rogério Brito (o sacerdote), Daniel Infantini (Horemeb, o comandante do exército egício), Reynaldo Machado (Lupakish, o general hitita) e Monalisa Silva (Ankese, a rainha do Egito),

“Há uma reivindicação do movimento negro no mundo pela sua representatividade no Egito Antigo”, diz, citando os protestos contra racismo ocorridos por ocasião da exposição Toutânkhamon: le Trésor du Pharaon (Tutancâmon: o tesouro do faraó), em cartaz no Grande Halle de La Villette, em Paris, até 22 de setembro.

“Se levada ao palco, a peça deveria receber um tratamento sóbrio, quase rústico. Pede-se que os atores movam-se o menos possível e que procurem declamar as falas em vez de interpretá-las”, segue Frias Filho em suas recomendações, encontradas na nota à peça, incluída na edição da Cobogó. “O Otavio foi muito claro em relação ao risco que é encenar essa peça, e o caminho mais comum seria tentar fazer um Egito estereotipado. Então, tivemos a ideia de que o ambiente fosse uma sala de museu. Mas uma sala em estado de guerra, que tivesse uma urgência, na qual as figuras do passado estivessem sendo protegidas. Usei embalagens de transporte de obras de arte, remetendo a uma exposição sendo montada — ou desmontada. Acho que ficou muito rústico, como queria o Otavio”, conta Laura Vinci, cenógrafa da peça.

O livro traz ainda uma adaptação para o palco do ensaio O terceiro sinal, no qual Frias reflete sobre sua relação com o teatro e a experiência como ator na montagem de Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, pelo Teatro Oficina. O texto é assinado em conjunto com a atriz Bete Coelho, que o levou ao palco em 2010 e encarnou um Otavio Frias Filho convertido em personagem teatral — e que agora faz o papel da vidente em Tutankáton. O ensaio original foi publicado entre os “sete ensaios de risco” de Queda livre (Companhia das Letras), em 2010 e em 2018. Completam a edição textos do crítico Marcelo Coelho e da editora Fernanda Diamant, viúva de Frias.

Obra-prima dentro da obra-prima

As impressões de Frias devem ser interpretadas, segundo Diegues, com certa ironia: “Não se deve ler ao pé da letra o que o autor diz sobre seu texto. De forma alguma ele encerra qualquer entendimento que se possa ter a respeito daquilo que escreve; ao contrário, ao ser tão ironicamente duro com a própria produção, Otavio provoca o leitor crítico a refletir a ponto de discordar do autor, o que dá um bocado de poder a quem lê e, com isso, um prazer ainda maior na leitura”. 

Para a diretora, o autor escreve para pensar e, com isso, ganhar distância do texto, tentar compreendê-lo, desfazer os nós, para dar a si mesmo, o autor, sentido à escrita. “Isso é o que traz sabor à nota e nos faz conhecer o personagem-autor em Otavio.”

Muito influenciada pelas notas — “eu tenho muito encantamento por elas, acho que são uma obra-prima” —, Mika Lins conta que seu maior desafio foi fazer com que o texto fosse bem articulado pelos atores. “O protagonista dessa peça é o Tutankáton? É. E ela tem imagens, tem uma luz sofisticada, um cenário deslumbrante, tudo maravilhoso. Mas o verdadeiro protagonista é o texto. E a gente quer contar, articular, viver essas palavras que o Otavio escreveu com maestria com a maior competência possível”. 

Tutankáton
Quando:
9/8 a 1/9
Onde: Sesc Avenida Paulista (Av. Paulista, 119)
Quanto: R$ 12 a 40

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).