Literatura estrangeira,

Editora narra encontro com a escritora francesa Marguerite Duras

A brasileira Beatriz de Moura foi a primeira editora estrangeira a publicar ʽO amanteʼ

23jul2020

“Para mim, encontrar Duras foi não apenas encontrar-me com um ídolo, foi encontrar-me com a escritora mais importante da literatura francesa do pós-guerra”, conta Beatriz de Moura, carioca radicada em Barcelona que fundou em 1969 a editora Tusquets, que se consagraria como uma das principais editoras da Espanha já nos anos 1970. Um dos maiores sucessos do selo — publicado no Brasil pela editora Planeta desde 2016 — foi o breve romance O amantemagnum opus da escitora francesa Marguerite Duras (1914-1996), lançado originalmente em 1984.

Ganhador do Prêmio Goncourt no ano de seu lançamento, o livro, que acompanha a tumultuada história de amor entre uma jovem francesa e um rico comerciante chinês na Indochina pré-guerra, teve mais de 2 milhões e meio de exemplares vendidos apenas na França. Leia a seguir o relato de Beatriz de Moura, hoje com 81 anos, sobre o encontro com Duras, no qual escolheu a foto que estampou a capa da edição espanhola e que agora ilustra a nova edição brasileira do livro.

Eu já era leitora de Marguerite Duras ali pelos anos sessenta do século passado… Após muito tempo sem notícias sobre ela, no início dos anos oitenta, encontrei um pequeníssimo livro de sua autoria em uma livraria de Paris, O homem sentado no corredor, que me pareceu uma joia, com uma linguagem única, entrecortada, de ritmo brusco e ao mesmo tempo conciso. Jérôme Lindon, seu editor, não se surpreendeu pelo fato de que eu havia farejado o interesse daquela obra e me ofereceu outro texto breve para complementar a minha publicação, A doença da morte.

Graças a esses breves textos, meses mais tarde Lindon nos chamou para dizer que Duras havia lhe entregado um pequeno romance que seria, sem a menor dúvida, o bestseller da rentrée (temporada de publicação dos principais livros literários na França). E que, por isso, teríamos de mandar o mais rapidamente possível a nossa melhor oferta. Conhecendo a inclinação por apostas de meu sócio, Antonio López Lamadrid, sugeri que deveríamos ir com tudo, assumindo o risco de um possível fracasso.

Assim que o manuscrito chegou, nos fechamos na suíte de um hotel a poucos quilômetros de Barcelona para ler o livro e ir preparando os próximos passos. O amante me tirou o fôlego. Toni também mal podia acreditar, era uma novela extraordinária. Assim que terminamos de ler já pegamos o telefone para começar a negociação. Hoje todos nós sabemos que foi um negócio excelente.
Após fecharmos a contratação, Toni e eu viajamos a Paris para encontrar Duras e decidirmos qual seria a capa do livro.

Para mim, encontrar Duras foi não apenas encontrar-me com um ídolo, foi encontrar-me com a escritora mais importante da literatura francesa do pós-guerra. Quando chegamos em seu apartamento, no sótão que costumava alugar para estudantes, nos demos conta que Toni, que era um grandalhão, mal cabia no elevador e tinha de andar meio curvado naquele apartamento de teto inclinado. Com uma certa sensação de sufoco, nos concentramos, todos de pé, ao redor de uma mesa quadrada para analisar uma montanha de fotos.

De repente, revirando aquela pilha de imagens, todas de Duras, vi surgir em um canto a metade de um retrato, que fui deslizando até mim, muito lentamente, e perguntei a Duras se aquele rosto juvenil era o dela. Ela me olhou fixamente e disse em um tom muito displicente: Vous aimez ça? (Você gostou dessa?).

Fiquei muda olhando para ela: era exatamente a foto que queria para a nossa edição. Não podia acreditar que tudo havia sido tão rápido. Sim, esta era eu naquela época. Olhe para mim agora. Tenho o rosto devastado. Qual prefere?. Gosto de ambas. Nas duas é você, a pessoa que viveu essa história tão bela e a que, mais tarde, soube escrevê-la. Entre essas duas fotos está você. Ficou me olhando fixamente. Tentei sustentar esse longo olhar o máximo que pude, até que ela o desviou, pegou a foto com certa brutalidade e disse: Allez, prenez-la, faites-en ce que vous voulez (Vamos, pegue-a, faça o que quiser), e acrescentou em outro tom: Allez, on va déjeuner! (Vamos almoçar!).

Pois bem, fomos os primeiros editores estrangeiros do livro, e essa foto que escolhemos saiu em quase todas as edições em outros idiomas. Também serviu para que Jean-Jacques Annaud, diretor de cinema que viria a adaptar o livro para as telas, buscasse e escolhesse a jovem atriz Jane March como protagonista de seu filme.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).