Música,

As vozes de Bitita

Sambas compostos por Carolina Maria de Jesus ganham novos significados em álbum produzido por Sthe Araújo

28abr2023 • 17jan2024 | Edição #69

“Te mandaram a macumba,
Eu já sei quem mandou,
Foi a Mariazinha,
Aquela mulher que você amou”

É com esses versos de “Macumba” que o álbum Bitita – as composições de Carolina Maria de Jesus pede licença para abrir os caminhos dos sambas compostos por uma das maiores escritoras brasileiras, cujo legado tem sido merecidamente resgatado nos últimos anos. Depois de, em 2021, a Companhia das Letras ter reimpresso em dois volumes os diários de Casa de alvenaria, escritos após o sucesso de Quarto de despejo, e da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil Para os Brasileiros, no Instituto Moreira Salles, podemos redescobrir sua faceta de compositora no álbum Bitita – as composições de Carolina Maria de Jesus, lançado recentemente pelo Selo Sesc. O disco original, chamado Quarto de despejo (para navegar na onda do sucesso do livro), foi lançado em 1961. As versões originais na voz de Carolina de Jesus estão disponíveis na Rádio Batuta, no site do IMS.

A produção de Bitita é da percussionista Sthe Araújo, que participa da banda Funmilayo Afrobeat Orquestra, com AfroJu Rodrigues, além de integrar A Espetacular Charanga do França. Por esse motivo, chama a atenção o destaque para a percussão sobre os demais instrumentos.

Depois do sucesso de ‘Quarto de despejo’, podemos redescobrir a Carolina compositora

Nessas releituras, Araújo, que é de Pedreira, zona sul de São Paulo, reuniu grandes nomes em Bitita: além da própria artista, a percussão é composta pelos músicos Xeina Barros, sua parceira AfroJu Rodrigues, Maurício Badé e Cauê Silva em todas as faixas; Henrique Araújo no cavaquinho, em “Vedete da favela”; Lello Bezerra na guitarra, em “Simplício”; e Allan Abbadia no trombone, em “Rá, ré, ri, ró, rua”. Os coros foram gravados por Araújo, Pedro Lucas Pillar, Caê Rolfsen (que também assina a coprodução), Aloysio Letra e Tiganá Macedo. E as vozes escolhidas para dar nova vida às composições de Carolina de Jesus são um espetáculo à parte: Nega Duda e Girlei Miranda, do bloco Ilu Obá De Min, e Mestre Nico, multiartista recifense radicado em São Paulo.

A emoção deu o tom dos dois shows de lançamento do álbum em São Paulo, que ocorreram nos dias 8 e 9 de abril, no Sesc Pompeia. Dias depois, Sthe Araújo conversou com a Quatro Cinco Um sobre o projeto.

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Qual é a sua relação afetiva com Carolina Maria de Jesus?
Eu a conheci por intermédio da Conceição Evaristo. Li todos os livros dela e, na maioria das vezes, ela citava Carolina, principalmente quando se referia a um conto inspirado em Quarto de despejo, que está presente em Becos da memória.

Quando li Quarto de despejo, parece que eu realmente vivi aquilo, porque passei dezoito anos em comunidade, criada pela minha avó, que era mãe solo, com cinco filhas e duas crianças, no caso, eu e meu irmão. Nós morávamos em uma casinha de dois cômodos, na zona sul de São Paulo, e a minha avó não era catadora, mas trabalhava como doméstica e sempre recolhia o próprio material reciclável para vender. Ler a Carolina foi como ver a minha avó.

Como foi conhecer esse lado da Carolina como compositora?
Foi uma surpresa. Isso diz muito sobre apagamento. Carolina ficou tão no fetiche da pobreza, aquele fetiche de uma pessoa negra passando pela miséria. A partir do momento que não é esse o retrato, ele perde força, e eu sinto que Quarto de despejo em disco perdeu a força, porque não retratava a miséria da mesma maneira como o livro. É surpreendente saber que ela escrevia peças de teatro, costurava as próprias roupas, gostava do seu jeito de ser, de dançar e cantar. A gente acaba esquecendo de divulgar, de dar espaço para a riqueza que ela tem.

Escolhemos imagens muito bonitas da Carolina, que fogem da representação da miséria

No show foram escolhidas imagens muito bonitas da Carolina, com ela escrevendo e de uma sessão de fotos lindas que ela fez com a Zélia Gattai, com as roupas que ela mesma produziu. Registros que fogem dessa representação da miséria.
As imagens vão ao encontro do que selecionamos para a capa. Inclusive, o título Bitita foi escolhido por ser um nome afetivo que ela recebeu da própria família e também por ser um nome próximo. Carolina não gostava de ser retratada como uma mulher de turbante. Hoje, se você vê uma imagem de uma mulher de turbante, automaticamente se lembra dela, porque a mídia faz isso. Então, nessas fotos da Zélia está a Carolina artista. Ela está feliz com o próprio chapéu que fez, com as próprias roupas, plumas, enfim, o Carnaval de que ela gosta. A escolha das imagens em que ela escreve, dá autógrafos, é como ela gostava. Vestido bonito, com o cabelo à mostra e fazendo festa.

Como foi o convite para o projeto?
Foi feito pelo Selo Sesc, em dezembro de 2021. Fiquei um mês matutando o que eu iria fazer, quais seriam as ideias, quem chamar, a quem contar. Logo de início, escutava uma música e ficava na dúvida se realmente era aquilo que a Carolina queria falar, ou se o problema era o arranjo que estava sendo tocado de um jeito e a palavra sendo falada de outro. Isso me causava confusão, porque eu queria dar uma nova voz a essas letras, interpretando com um significado que fosse realmente mais próximo do que Carolina sentia. Além de ser percussionista, adoro percussão, adoro melodia de tambor, e pensei em convidar pessoas que não eram só referências para mim, mas saberiam interpretar direitinho as canções. Não tinha como eu escolher uma pessoa só, porque são muitas forças, muitas vozes no momento de ser do álbum… Tem o momento da crítica engraçada, o da crítica amorosa e o da denúncia. A partir daí, cheguei a essas três pessoas.

Como foi a escolha para essas vozes?
A Nega Duda foi escolhida por ser uma voz que tem uma força ancestral. Não só por isso, como também pela vivência dela dentro da percussão. São pessoas que não precisam necessariamente ter um acompanhamento de violão, de algum instrumento harmônico. Tanto ela como a Girlei Miranda são assim. A Girlei é daqui de São Paulo, da região da Freguesia do Ó, e também cresceu dentro da cultura popular da cidade, que é o samba em redes, em escolas de samba, dentro da comunidade. As duas mulheres que eu escolhi para cantar fazem parte do bloco Ilú Obá De Min, composto por mais de trezentas mulheres tocando tambores, só tambor e voz.

O Mestre Nico [escolhi] pela interpretação, pelas experiências que tive com ele. Eu também não conseguia fazer uma leitura de uma mulher cantando as músicas machistas. Por mais que a gente esteja em 2023 e que eu tenha essa noção de que os tempos são outros, seria importante um homem retratar o próprio machismo que causa nas mulheres.

E os músicos?
Pensei em fazer algo só de percussão, com pessoas que também são minhas referências. A primeira mulher que eu vi tocar na roda de samba foi Xeina Barros. E uma das pessoas que mais gravou percussão em discos da música brasileira, vivo e totalmente ativo hoje é o Maurício Badé. Não só as percussões na música popular, como também na música pop. O Cauê Silva, que tem uma percussão bem ligada à percussão baiana, aos toques de terreiro. E a AfroJu Rodrigues traz uma mistura de percussão brasileira, é mais nova do que eu e está comigo em outros trabalhos. Estou muito satisfeita com todas essas gravações.

O que chamou mais a sua atenção nas composições da Carolina? 
O que mais me tocou é a Carolina falar de coisas sérias com muito humor. Essa era uma das maiores dificuldades com os arranjos. Em “Malandro”, olha o que está sendo dito: “Eu estou correndo da polícia, quem é que me entregou? Quem foi esse malandro que me entregou?”. Mas ele conseguiu fugir, abriu a janela, saltou, conseguiu fugir. Na minha interpretação, os arranjos conseguiram se aproximar do significado do que ela estava falando.

Carolina fala de coisas sérias com muito humor, essa foi uma das dificuldades dos arranjos

O disco Bitita termina com “Quem assim me vê cantando”, que é uma música muito profunda, falando que ela merece esse sentimento, merece receber amor, mas está mal, triste, pois é uma mulher. Uma mulher que quer ter alguém e ao mesmo tempo não quer mais, sabe? Já que é para sofrer, melhor que a pessoa vá embora. O disco original deixou algo que poderia ser aprofundado mais. É uma música que traz muita dor. Essas letras têm esses sentimentos profundos, tanto com amor como com denúncias, protestos, manifestações. Essa faceta deixa a desejar nos arranjos originais.

É porque os arranjos originais eram calcados mais em marchinhas carnavalescas da época? 
Acho que os arranjos atuais não são mais profundos, mas trazem mais camadas. Porque já era essa a sonoridade da época, era o normal. Eram os regionais, que eram muito comuns. E era a música de que ela gostava, que escutava nas rádios. Não desmerecendo isso, mas, ao mesmo tempo, os arranjos não foram pensados com a composição. A Carolina não foi para o estúdio e falou: “Eu quero que seja tocado este acorde, quero que seja feita esta produção, quero que tenha este acompanhamento”. Foi uma coisa que ela chegou e cantou, só. As músicas foram escritas assim. Não é que a Carolina teve a liberdade de escolher esses arranjos, por isso eu acho que não tem tanta profundidade com relação ao que ela fala, porque de fato não era uma assinatura pura dela.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #69 em abril de 2023.