Literatura brasileira,
A arte de Carolina
Publicação de livros inéditos e exposição sobre escritora mineira exploram sua polivalência artística
01ago2021 | Edição #48O sucesso de Carolina Maria de Jesus é envolto em um certo mito. No prefácio de Quarto de despejo, o jornalista Audálio Dantas conta que descobriu a escritora enquanto fazia uma reportagem na favela do Canindé, em São Paulo, em 1958. Proponho, no entanto, o inverso: foi Carolina quem descobriu Audálio e aproveitou o encontro para apresentar seus escritos.
Muitos jornais estamparam produções de Carolina na década de 40, quando ela também já anunciava a intenção de publicar seu livro Clíris, de poesias. Quando passou a morar na favela, ela já tinha uma grande bagagem como poeta e na sua relação com veículos de comunicação. De acordo com o biógrafo Tom Farias, a primeira dessas entrevistas foi publicada na Folha da Manhã em 1940, junto ao seu poema “O colono e o fazendeiro”. É tosco, portanto, imaginar que foi Audálio ou a publicação de Quarto de despejo que despertou a verve da escrita em Carolina. De 1940 a 1955 (ano do primeiro texto apontado em Quarto de despejo) foram, ao menos, quinze anos de lida literária. Não é pouco tempo.
No barraco de Carolina, Audálio se encantou com os diários da escritora e se comprometeu a encontrar uma editora para publicá-los. Nesse período de dois anos entre o encontro com o jornalista e o lançamento do livro, vários textos sobre ela apareceram nos jornais, inclusive com trechos de Quarto de despejo. Carolina talvez seja uma das únicas autoras a ter fortuna crítica, muitas vezes de forma depreciativa, anos antes de o público entrar em contato com seus escritos. Os elementos de luta — uma mulher negra, mãe solo, migrante, favelada, pobre, com poucos anos de estudo formal — chegam antes mesmo da obra. E isso acontece até hoje.
Quarto de despejo se tornou um fenômeno instantâneo. Com um mês de lançamento, o livro entrou na sua terceira edição, com 50 mil exemplares. “Sucesso igual, só o livro Lolita, best-seller dos Estados Unidos, que vendeu 80 mil exemplares, em um mês”, anunciou, na época, o Jornal do Brasil. Eram vendidos, em média, apenas na loja central da Livraria Francisco Alves, cerca de quinhentos exemplares por dia. Na época, um livro considerado best-seller vendia por volta de cinquenta exemplares por dia. No exterior, em pouco mais de quatro anos, ela já estava sendo lida em dezenas de línguas. Especula-se que, fora do Brasil, seu livro tenha vendido mais de 1 milhão de cópias. Nada igual se viu nas letras nacionais, principalmente em se tratando de uma mulher com a trajetória de Carolina.
Um novo cânone
A novidade não era necessariamente o tema — a fome ou a favela. Nos anos 30, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz escreveram sobre a seca e a fome. Mas não havia alguém de dentro da miséria escrevendo sobre a miséria. Carolina dá humanidade à favela. Há uma longa genealogia entre os movimentos literários que aconteceram no Brasil nas últimas décadas, como a explosão dos slams e da literatura periférica, com o universo caroliniano.
Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914 em Sacramento, no interior de Minas Gerais, apenas 26 anos após a assinatura da Lei Áurea. Seu acesso a cerca de dois anos de estudo formal não a distancia muito da média da época. Passou grande parte de sua juventude trabalhando como empregada doméstica e migrou de Minas para São Paulo em busca de uma nova vida.
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Quando chega à metrópole, por volta de 1937, passa a frequentar as redações de jornais. Ela conta que, nos primeiros anos na cidade, foi tomada por “um desejo de escrever”. E escreveu. Fixou-se na favela do Canindé em 1948, onde construiu o próprio barraco e, com o tempo, cansada de se submeter aos mandos e desmandos das patroas e também por necessidade, começou a trabalhar como catadora de papel. Na favela, experimentou a miséria. Ainda assim, ou até mesmo por causa disso, escrevia sistematicamente. Nunca quis ser uma escritora favelada, porta-voz de grupos minorizados. Queria apenas ser lida. Carolina tinha um projeto literário próprio.
Pesquisadora que se dedica a desvendar o universo caroliniano, Fernanda Miranda faz parte de dois grandes projetos que buscam retomar a literatura de Carolina pela letra de Carolina, apresentando complexidades e nuances que foram desprezadas pela crítica da época. O primeiro deles é o conselho editorial da Companhia das Letras, responsável pelo lançamento de textos inéditos da escritora, além de publicar novas edições de livros que estavam fora de circulação, como o recém-lançado Casa de alvenaria.
O livro é reapresentado em edição integral, refeito diretamente dos manuscritos de Carolina, com uma bela introdução das coordenadoras do projeto, a escritora Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina e uma das personagens, talvez a mais dileta, de seus diários. Dividido em dois volumes, Casa de alvenaria retrata a vida da autora depois de deixar a favela. A partir dele, é possível fazer um raio X dessa celebridade-relâmpago: o contato com a imprensa, os círculos literários e editoriais, a classe média. No livro, não há mais aquela poética esperançosa de Quarto de despejo. Carolina agora padece no próprio sonho. A escritora é dura com a sociedade que a recebeu, é sarcástica. Lançada em 1961, a obra teve tiragem inicial de 30 mil exemplares. Notas esparsas e comentários secos na imprensa deram ao livro uma recepção bem abaixo da esperada pela autora.
“Agora, com Casa de alvenaria, as nuances da narradora, todos os recursos que ela emprega, vão ficar muito mais visíveis. São elementos que compõem o texto tipicamente literário, mas que nem sequer foram percebidos, porque havia uma resposta pronta de que ela estava apenas retratando a favela”, comenta Miranda. Outro projeto que conta com sua pesquisa é a exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”, do Instituto Moreira Salles (IMS) paulista, com data de abertura prevista para 25 de setembro. A exposição traz fotografias, documentos, periódicos e manuscritos, além de obras de artistas que refletiram sobre ou se inspiraram em Carolina. Traz, ainda, uma raridade: o disco Quarto de Despejo, com músicas da escritora e gravado por ela em 1961.
Da letra de Carolina, os curadores Hélio Menezes e Raquel Barreto retiraram o nome da exposição. “Um Brasil para os brasileiros” é o título original, dado pela autora, ao livro Diário de Bitita, publicado postumamente, com memórias da infância em Sacramento e no qual analisa as condições socioeconômicas no pós-abolição. Um dado curioso é que Carolina atribui essa frase a Ruy Barbosa. “Carolina desoficializa e reatualiza uma frase atribuída a Ruy Barbosa, homem, branco, de classes poderosas, tomada a partir da perspectiva de uma mulher, negra, migrante, empobrecida”, comenta Hélio Menezes. “A exposição, já em seu título, anuncia a nossa dupla vontade: retomar a letra de Carolina e mostrar como na sua escrita há uma interpretação literária do Brasil, que passa por um processo de diálogo com os cânones do país, assim como a elaboração de um outro cânone, um contracânone.”
E o que poderia estar provocando o recente resgate da obra de Carolina? Essa é uma pergunta que, como bem alertou Raquel Barreto, é uma armadilha. Levantaríamos a mesma questão num texto sobre Guimarães Rosa? “A continuidade praticamente ininterrupta da publicação de Quarto de despejo é a prova de que ele é um clássico”, explica a curadora da exposição. “Há, em alguns momentos, conjunturas que tornam o texto da Carolina mais incorporado a um outro público, mas ele é vendido há décadas. Não podemos olhar Carolina como uma excepcionalidade, porque dá a impressão de que é um ciclo, de que ela chega e vai embora. Carolina é uma autora que sempre esteve sendo lida.”
“Há um período, principalmente nos anos mais duros da ditadura, em que Carolina some, mas muita gente some também”, comenta Fernanda Miranda. Afinal, o conteúdo dos livros de Carolina representava uma afronta aos ideais do regime militar. “Desde os anos 90, pelo menos, ela é uma figura muito presente. O que precisa ser pensado é justamente como ela aparece. Só agora ela está sendo vista na sua complexidade. Ela sempre esteve por aí, mas eram outras pessoas que estavam captando, como o rap e os movimentos negros.”
Como consequência da lei nº 10.639, sobre o ensino de cultura negra nas escolas, e da implementação de políticas de ação afirmativa nas universidades, há um número cada vez maior de acadêmicos interessados em pesquisar a obra de Carolina — é um público que reivindica o destaque para autores negros na história brasileira. Há um contexto de maior sensibilização sobre questões raciais na população de forma geral, demandando uma oxigenação do mercado editorial brasileiro, no qual as grandes editoras sempre relegaram escritores negros à margem.
Carolina Maria de Jesus, no entanto, trouxe para o centro suas reflexões sobre o Brasil. Ela movimentou a cena literária brasileira. Enquanto jk pregava o desenvolvimentismo, Carolina expunha uma antimodernidade. No prefácio de Quarto de despejo, Audálio Dantas escreve que a fome aparece no livro de forma “irritante”. É justamente esse elemento inquietante que provoca e incomoda o cânone literário. “Carolina foi uma predecessora. Sem ela, esse interesse maior das editoras pela autoria negra nem sequer existiria”, comenta Hélio Menezes.
Acervo em risco
Essa efervescência contrasta com a decadência com que muitas obras raras de Carolina têm sido armazenadas. Cerca de 6 mil páginas manuscritas pertencem hoje ao Arquivo Público Municipal de Sacramento, após terem sido doadas por Vera Eunice nos anos 90. Fora de Sacramento, o acervo está disperso em muitas instituições, como o Instituto Moreira Salles, a Fundação Biblioteca Nacional e o Museu Afro Brasil. Vera Eunice foi convidada a visitar Sacramento durante a comemoração dos trezentos anos de Zumbi e acabou se comovendo com a recepção. Decidiu doar, então, os manuscritos e originais que havia herdado após o falecimento de sua mãe, em 1977. “Foi a pior coisa que fiz”, conta. “Ficaram numa caixa. Três anos depois eu voltei e estavam na mesma caixa. Falei para eles que se tivesse uma escritora do tamanho de Carolina ia querer colocar um busto dela, fazer um museu na cidade. Mas eles não me devolvem o material nem cuidam dele.”
Entre 2013 e 2014, o pesquisador Sergio Barcellos, idealizador do projeto Vida por Escrito, fez levantamentos iniciais sobre o acervo de Carolina no Arquivo de Sacramento. Os documentos do acervo haviam sido higienizados durante o processo de microfilmagem por meio de um convênio entre a Biblioteca Nacional e a Library of Congress, dos Estados Unidos, em 1996. No entanto, a forma como estiveram acondicionados durante os anos seguintes comprometeu o trabalho de conservação realizado. Vários cadernos estavam inapropriadamente acondicionados em sacos plásticos, em um ambiente sem controle de temperatura ou umidade. Em 2014, por ocasião do centenário de Carolina, o então prefeito da cidade disse que estava ciente das condições precárias de guarda e armazenamento do material. No entanto, nada foi feito.
‘Desde os anos 90, Carolina é uma figura muito presente. Só agora ela está sendo vista na sua complexidade’, explica a pesquisadora Fernanda Miranda
“Quando elaborei esse projeto, eu queria fazer um levantamento do que existia de Carolina e preparar um inventário para que os pesquisadores pudessem ter contato”, conta Barcellos. “Fiquei muito perplexo que ela tinha tudo aquilo escrito, mas as pessoas só produziam trabalhos acadêmicos em cima de Quarto de despejo, no máximo de Diário de Bitita. Ela investiu tanto na carreira literária dela. Por que a gente só vai concentrar os estudos e a atenção em um livro?”
Em 2014, a pedido de Vera Eunice, Barcellos enviou um texto com sugestões para melhoria das condições de guarda dos documentos do Arquivo. Nada foi feito. Com instituições da sociedade civil, Vera Eunice entrou então com uma representação na Câmara Municipal pedindo que o Legislativo fiscalizasse o acervo. Nada. Recentemente, a filha de Carolina fez uma denúncia no Ministério Público, que foi acatada pelo promotor de Sacramento. “Se a gente fosse dar idades para os cadernos, os que estão em Sacramento têm oitenta anos, e os que estão em posse do ims têm uns cinquenta. É claro que o papel é perecível. Um dia ele vai se destruir, mas existem meios para prolongar a vida dele. Há diversas pesquisas que vão contar com essa materialidade. É um documento muito recente para estar no estado em que está”, explica Barcellos.
Direitos autorais
Carolina teve três filhos: João José, que morreu meses após o falecimento da mãe e não tinha herdeiros; José Carlos, que morreu em 2016 e deixou quatro filhas; e Vera Eunice, que tem 68 anos. As cinco herdeiras da autora estão em uma constante disputa pela divisão dos seus bens.
A parte de Vera Eunice está assegurada, e ela recebe normalmente. O que não ocorre com as filhas de José Carlos — Lilian, Eliane, Elisa e Adriana Carvalho de Jesus. As quatro irmãs afirmam que a Companhia das Letras foi a única empresa que repassou os valores referentes aos direitos autorais da avó, num adiantamento de R$ 50 mil. Desde que o pai faleceu, elas tentam receber da Ática, responsável pela publicação de Quarto de despejo, e do Sesi-SP, que publica Diário de Bitita, mas não conseguem. Como o contrato nessas editoras foi assinado pelo pai, as empresas pedem um inventário de José Carlos para liberar a transferência. Na Justiça, o juiz pede o inventário de Carolina para dar prosseguimento ao inventário de José Carlos.
Quando Carolina faleceu, Vera Eunice e José Carlos não fizeram o inventário da mãe, pois não sabiam que era necessário fazê-lo. O que traz consequências diretas para as netas. Adriana conta que hoje ela e suas irmãs passam por dificuldades financeiras. Em março, criaram o perfil Netas de Carolina de Jesus, no Instagram, em que reivindicam visibilidade e acusam a tia de dificultar o acesso às negociações sobre direitos autorais da escritora. Elas também dizem não ser informadas sobre os projetos que envolvem a memória da avó. Adriana conta que ficou sabendo pela internet sobre a exposição do ims. Depois de matéria da revista Veja relatando o caso, no início de julho, a advogada das irmãs teve sua primeira reunião com a equipe jurídica do instituto. Vera Eunice, que participa do conselho consultivo da exposição, afirma que não assinou nada com o centro cultural. O instituto confirma que está em contato com as herdeiras de Carolina para definir os procedimentos necessários para a apresentação da exposição.
Existem, ainda, tratativas para a filmagem de uma adaptação cinematográfica de Quarto de despejo, com produção de Globo Filmes, Raccord, Maria Produtora e Buda Filmes, que compraram da Ática, que possui os contratos para a comercialização da obra, os direitos autorais. A editora tinha colhido a assinatura de Vera Eunice e José Carlos, quando ele ainda estava vivo. As filhas de José Carlos, porém, alegam que também precisariam assinar a cessão, uma vez que o pai morreu antes dos acordos atuais de filmagem.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Cultural.
Nota de edição
Na versão original deste texto, a data prevista para a abertura da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros era 18 de setembro. O texto foi atualizado em 17 de agosto para levar em conta a nova data prevista de abertura: 25 de setembro.
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Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.
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