Livros e Livres,

Nu com a minha literatura

João Silvério Trevisan lança segundo volume de memórias e repassa a história do país e de suas dores

30jun2023 | Edição #71

João Silvério Trevisan está nu. Um dos precursores do movimento LGBTQIA+ no país, que ajudou a contar a história da nossa homossexualidade no clássico Devassos no paraíso, o escritor de 79 anos tem se dedicado a contar a própria história. Leva assim ao ápice o projeto — ou “obsessão”, como define — que começou com sua literatura. “Aqui está quem eu sou, as minhas dores, aqui sou eu pelado”, anuncia ele, que acaba de lançar Meu irmão, eu mesmo, segundo volume de memórias de uma trilogia iniciada em 2017.


Meu irmão, eu mesmo, segundo volume de memórias de uma trilogia iniciada em 2017 por João Silvério Trevisan

Se em Pai, pai Trevisan narrou a relação atormentada com um pai alcoólatra e violento, no novo livro ele relembra a intensa amizade com o irmão Cláudio, que morreu aos 48 anos de um câncer linfático. O processo de desnudamento fez com que o escritor tornasse público viver com HIV há trinta anos. A presença do vírus foi diagnosticada em 1992, época em que ser infectado era visto como uma sentença de morte. A busca pelo mistério que conecta sua sobrevivência ao padecimento do irmão é o motor da narrativa. “Sobrevivi para relatar”, diz.

A “trilogia da grande dor”, como batizou, exacerba o projeto do escritor de não estabelecer fronteiras claras entre vida e literatura. Tarefa que começou cedo, ao se unir a colegas para fundar o Somos, embrião do movimento LGBTQIA+ brasileiro, e o Lampião da Esquina, primeiro jornal gay do país. Sem muitas referências à vista, decidiu se tornar a sua própria e pagou o preço: foi perseguido pela ditadura e por parte da esquerda, que rejeitava seus livros por tratar de “sexualidade resultante da decadência burguesa”.

Antropofágico amor, última parte da série de memórias ainda sem data de lançamento, também será ambientada nessa época. Iniciada há quarenta anos, vai narrar a ruptura de uma relação amorosa que o autor viveu com um dos colegas fundadores do Somos. Uma cicatriz tão profunda que será a única contada em terceira pessoa. Logo na primeira página, no entanto, Trevisan diz que deixará claro se tratar de uma história real. “Espero que meu prazo de validade me permita escrever.”

Você já disse que decidiu escrever o primeiro volume de memórias, Pai, pai, perto dos setenta anos, enquanto tratava uma depressão reincidente. Por que decidiu fazer o segundo volume sobre seu irmão?
Eu tinha pensado primeiro no terceiro volume, que tem quarenta anos já de projeto. O do Cláudio tem trinta anos. A segunda parte foi quase toda escrita no correr dos fatos. E uma [parte] em que eu nunca pensava era o Pai, pai. Só que a problemática com meu pai vinha da minha vida inteira e foi quando eu fui escrever o livro que me dei conta de que aquela ausência estava presente em toda a minha obra, inclusive no meu filme. 

O que me adensou a necessidade de escrever, além da depressão que tinha me acompanhado a vida toda, foi que eu comecei a não ter mais paciência em ter que comprovar, enquanto homossexual, aquilo que as pessoas não acreditavam que era vital para mim. Era uma obsessão da gente, nos tempos do Somos e do Lampião, buscar referências para manter um diálogo mínimo com nosso tempo e com a sociedade. Nesse contexto, pensei: “Eu não tenho mais o que fazer senão mostrar para essas pessoas que esta é a minha vida. Não vou ficar citando autores, fazendo pesquisas no entorno. Aqui está quem eu sou, as minhas dores, aqui sou eu pelado.” Isso era crucial para mim e vai acompanhar toda a trilogia. Tanto é que em Meu irmão, eu mesmo cheguei a um extremo quando falei do meu HIV. Na verdade, não era nenhuma novidade porque, desde os 19 anos, era o meu projeto: a minha literatura é parte da minha vida e a minha vida compõe a minha literatura.

Pode-se dizer que a trilogia tem um fio condutor que passa por três figuras masculinas. Como podemos ler essa centralidade do masculino em sua obra?
Não pensei nisso quando decidi escrever, mas é uma análise correta. O meu terreno é o do meu desejo, do meu amor e das inúmeras dificuldades que o masculino apresenta para mim e para o meu entorno. Dentro da comunidade gay, isso é infernal. No entanto, esse é o pântano em que eu estou trabalhando com o meu desejo e o meu amor e não abro mão disso: nem desse pântano, nem desse amor.

A masculinidade é muito importante para mim, mas eu adoro o feminino, que me dá uma certeza, um terreno onde pisar. Se você pergunta, por exemplo, por que eu fiz um livro sobre meu pai e não sobre minha mãe? A minha mãe, quando escrevi Ana em Veneza, está lá: “À memória de Maria Carmelina Aiello, que me deu a vida e a literatura.” E foi exatamente assim. Eu chegava de férias do seminário e tinha uma pilha de livros que ela comprava à prestação na única livraria da cidade para eu ler. Essa mulher é como se estivesse sedimentada dentro de mim. Ela me deu estruturas do feminino que me seguram. Esses elementos compunham pra mim uma necessidade de fazer a crítica do machismo desde sempre. Tenho muita tranquilidade com relação ao feminino e a minha homossexualidade passa por aí.

No livro, você conta como quis falar sobre a aids naquela época e foi convencido pelos irmãos de que não deveria. Depois, reflete que queria ser reconhecido pela sua obra e não por um vírus. Olhando em retrospectiva, teria agido diferente?
Não teria e foi nesse momento que fiz uma separação entre o que é a comunidade LGBT da qual eu participo e a que pede explicações. Esta é daninha e eu tive sérios problemas políticos por causa das minhas críticas. Esse momento do HIV foi um deles. Era exigido uma adequação à norma comunitária que era ajudar outras pessoas. Eu tinha consciência de que era um problema que se abatia sobre a comunidade toda, mas quando chegou a hora extrema, a comunidade não estava encarando o meu problema. Eu não tinha nenhum motivo para ser o heroizinho do movimento homossexual. Então foi muito sofrido tomar uma decisão, mas ao mesmo tempo foi muito natural.

Foi depois daquela capa infame da Veja com o Cazuza que as pessoas realmente perceberam que o negócio era brabo — não apenas para a comunidade, mas tinha um viés fascista ali. Então tomaram um pouco as dores e começou a vir aquela coisa de uma consciência culpada: “Ah, então você tem HIV? Nossa, você deve ser uma pessoa maravilhosa, um grande escritor”. Essa ideia pra mim era podre, sufocante, desanimadora porque vi inclusive o que aconteceu com o Caio [Fernando Abreu]. O Caio sofreu muito até aceitar o HIV dele. Eu acompanhei um pouco com a Hilda [Hilst]. Ele era de uma fragilidade imensa, com toda aquela ironia. Já quase no fim da vida, resolve abrir o jogo. E é nesse momento que a coisa pega: Caio é consagrado por causa do HIV dele. Eu, que o conhecia e conhecia a hipocrisia da cena intelectual e literária do Brasil, disse: não quero isso para mim.

Ainda sobre essa questão, você relata as dificuldades de falar abertamente sobre sua sorologia por causa do negacionismo dentro da própria comunidade LGBTQIA+ no início da epidemia. Você planejava esse momento da revelação?
Não foi em função disso, absolutamente. À medida em que eu fui escrevendo as coisas com o Cláudio — toda a segunda parte foi escrita praticamente no período em que vivemos próximos —, fui sendo levado a me perguntar: qual o sentido do câncer do meu irmão e do meu HIV se cruzarem. Percebi que havia o que eu chamo de mistério, não no sentido transcendental, mas um mistério vital: eu condenado à morte e um heterossexual que morreu antes de mim por um câncer brutal. 

No livro, entendi perfeitamente que essa encruzilhada tinha a ver com o mistério das nossas vidas, dos nossos amores. É como se meu irmão tivesse de certo modo morrido no meu lugar. Em um determinado momento menciono que tinha medo de que ele pensasse nisso, que deixasse de me amar. O fim da vida dele foi muito doloroso, meu irmão morreu desesperado e tudo o que eu queria era ajudá-lo a encarar a sua morte. Eu sobrevivi para relatar. E que bom que eu realmente não mencionei, porque no livro a revelação do meu HIV em relação ao câncer linfático do meu irmão faz todo o sentido. Coloca um problema para mim e para quem for me ler.

Em Pai, pai, você faz uma espécie de acerto de contas com seu pai, relembrando episódios dolorosos de violência e alcoolismo na sua infância. Seu irmão, apesar de mais novo, ocupou esse lugar de referência masculina de amor?
Cláudio de certo modo coloca para mim uma esperança de que homossexuais podem ser amados por não homossexuais e por serem homossexuais. Ele deixou isso claro, quando contei para ele [sobre a homossexualidade]: “Eu já te admirava e agora te admiro ainda mais pela tua coragem de ser quem você é”. Ele compreendia perfeitamente os meus valores, e o mais importante que eu tenho é a fidelidade a mim mesmo. E esse “mim mesmo”, eu não sei quem é. Nós somos nosso primeiro grande mistério. A minha busca de ser quem eu sou é para mim uma coisa crucial. Acho que o Cláudio sedimentou fortemente essa consciência em mim porque compartilhava dela. Talvez ele ocupasse esse espaço da compreensão. Não o lugar do pai, mas o esteio que ele nunca me deu.

Muitas pessoas LGBTQIA+, especialmente homens gays, migram para os centros urbanos em busca de anonimato, num processo de afastamento e até ruptura com as famílias. Você manteve os vínculos com o núcleo familiar. Como foi isso?
A minha mãe é crucial nessa história. Foi ela que nos deu esse afeto como exemplo, que não pedia nenhum retorno. Ela nunca teve o diploma do grupo escolar porque era a mais velha, criou os dois últimos irmãos. Meu avô morreu com 38 anos e ela teve que ficar em casa enquanto minha avó ia com os outros filhos para a roça colher café. O afeto da minha mãe era tão intenso que me marcou e marcou o meu feminino. Quando eu via meu pai batendo na minha mãe eu já sabia que era um machão batendo numa mulher. Ela foi o canal que me levou ao feminismo naturalmente, que deu a nós a senha para o afeto, de modo que foi um problema para mim me separar. Quando eu quis sair de casa para resolver a minha homossexualidade e me encarar de fato, ela me perguntou: “Por que que você está indo embora de casa?” Eu disse: “A senhora quer que eu seja feliz? Então me deixa ir embora”.

Você também menciona os atritos que teve com o movimento LGBTQIA+ pelas ligações com partidos. Recentemente, vimos uma eclosão da extrema direita, impulsionada por grupos que pregavam a antipolítica. Acredita que é possível uma militância longe da política partidária?
Eu nunca neguei a política. Vamos fazer uma diferença entre o que é política e o que é política partidária. Não preciso escolher entre esquerda e direita: sei onde estou e onde quero estar e esse era o meu grande problema com a esquerda. Sempre foi, desde quando comecei minha vida literária e recebia censura em Brasília e em São Paulo, em focos de esquerda. Meu primeiro artigo sobre a história do homossexualidade, publicado no jornal O Movimento, foi proibido pela censura em Brasília e me devolveram os originais que já estavam cortados pela redação. Era angustiante ver isso e pensar: estou num fogo cruzado.

Escrevi a minha primeira novela, que nunca foi publicada, provocada pelo Lula, de uma entrevista em que ele dizia que não havia homossexuais na classe operária. Dentro do Lampião isso foi uma verdadeira explosão atômica. Resolvi fazer a história de dois operários que se apaixonam e sequestram o patrão para conseguir dinheiro e ir embora do país. Editores recusavam o tempo todo. Nós éramos o que havia de pior na esquerda, a “sexualidade resultante da decadência burguesa”, como eles diziam. Lamento que a questão da autonomia dos movimentos sociais não seja um tema privilegiado da esquerda, porque a partir do nascimento do PT eles se acoplaram ao partido e a minha teoria é que o Somos foi o primeiro prato devorado nessa experiência.

Isso não te impediu de manifestar apoio a Lula nessas eleições…
Já votei no Lula antes e não votei em outras circunstâncias. Dessa vez, não tive a menor dúvida. Agora, nunca fui um petista de carteirinha. Mas não sou louco de não perceber o que é a direita fascista. Assim como tem petista que considera fascista quem não é do partido. Quando vejo o Bolsonaro, essa radicalização, tenho que dizer que conheço esse negacionismo de dentro da esquerda, infelizmente. Sou de esquerda, mas não estou com carteirinha de partido, mesmo porque conheço de longe o mau cheiro do dogma. Estudei em um seminário durante dez anos e sei o que o cristianismo fez na história e neste país, com os indígenas, os negros e as mulheres.

Devassos no paraíso se tornou um clássico não apenas dos estudos de gênero e sexualidade, mas do pensamento social brasileiro, porque trata de uma dimensão negligenciada. A primeira edição saiu em 1986. Como você vê as mudanças no campo editorial para esses temas?
É claro que eu percebo diferenças porque foi muito duro. Da segunda edição para a terceira e da terceira para a quarta foram em torno de quinze anos de cada vez, recebendo “nãos”. Sei que houve uma grande evolução que, antes de mais nada, foi uma conquista dos movimentos sociais. Aí está uma questão importantíssima quando falo de autonomia. Movimentos sociais são cabeças pensantes para a nação fora de partidos. Eles podem até ajudar os partidos, mas não necessariamente estão se conduzindo por um manual partidário e isso é fundamental. 

Tudo isso foi uma conquista de um movimento anti-hegemônico. Eles são a grande muralha contra o bolsonarismo e o fascismo. Quando surge esse consumo todo, acho maravilhoso, ainda que apareça também a parte do mercado editorial mais oportunista que, até certo ponto, tem direito de usufruir. E se aparecer um outro tema para abrir um novo nicho, ela vai correndo para aquele. Isso já vi acontecer na minha longa história de cinquenta anos de atuação política e literária.

O terceiro volume de memórias vai tratar do fim de um grande amor. Em que pé está esse projeto?
Ainda não estou dedicado a ele porque tenho que escrever o making of de Ana em Veneza, que vai se chamar Viagem a Veneza. Antropofágico amor, a terceira parte da trilogia, tem o título retirado de um verso de um poema meu em um período em que estava claramente buscando suicídio. Estava no meio da construção de um movimento social para garantir a possibilidade do nosso amor e fui cruelmente abandonado, uma relação de cinco anos. A pessoa que fundou o Somos comigo é a outra protagonista dessa história.

No meio de todo o desespero que eu sentia, tinha a crença profunda de que, se aquele amor estava morrendo à minha revelia, o grande amor ao qual eu estava dedicado não ia morrer. O que eu fiz para tentar buscar um raio de esperança? Mergulhei na minha literatura. Escrevi Em nome do desejo, “Dois corpos que caem” — um conto importantíssimo pra mim, incluído entre os cem melhores do século 20 no Brasil —, escrevi Devassos também nesse período. Resgatei um pouco a minha possibilidade de sobreviver, mas a cicatriz ficou. E essa cicatriz eu respeito profundamente porque é a marca da minha disposição a voltar a amar. Várias vezes eu tentei retomar esse projeto, que já tem quarenta anos — a ruptura ocorreu em 1982 — e não consegui porque voltava a doer. Para que isso aconteça, vou escrever em terceira pessoa, mas na primeira página, vou deixar claro: Jônatas sou eu. Vou manter os pseudônimos, mas as situações, os lugares serão reais. Espero que meu prazo de validade me permita escrever essas coisas. 

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.