

Livros e Livres,
Para todas as crianças viadas
Sucesso nos palcos, Selvagem, de Felipe Haiut, convoca a resgatar a criança corajosa e rebolativa em nós — que só queria ser quem era
01fev2025 | Edição #90 fev“Quando eu era uma criança viada, eu não podia cruzar a perna assim.” É com esta frase que o dramaturgo e ator Felipe Haiut inicia seu solo autoficcional Selvagem, lançado em 2024 como livro pela Cobogó. Não há dúvida: quem ganha os holofotes desta dramaturgia é sua infância viada ou, como ele clama, selvagem.
Quem acompanha o artista nas redes sabe que Haiut já anunciou duas adaptações audiovisuais da obra, uma ficcional e outra documental. O desdobramento em diferentes linguagens reforça o impacto que a peça teve em suas plateias, cada vez maiores, além da acertada abordagem sobre infâncias dissidentes. Crianças que precisam lutar contra um sistema opressor e colonizador que busca reprimi-las desde muito cedo.

Por meio de suas histórias pessoais, Haiut nos convida a mergulhar em nossas próprias infâncias. A relembrar de quando fomos chamados de “viadinhos” sem entender o que aquilo significava ou de quando fomos alvos de deboche pelo nosso jeito de ser. Às vezes, bastava andarmos para falarem que estávamos rebolando. Movermos as mãos para apontarem que estávamos desmunhecando. O tempo todo vigiados e controlados, sem termos a quem recorrer, já que em muitos casos as críticas também vinham da própria família.
O mundo nos indicando que deveríamos nos moldar, apagar nossas subjetividades, destruir nossa alegria e nossos desejos. Justamente em um período de nossas vidas em que tentamos construir uma imagem positiva de nós mesmos e desejamos ser aceitos e amados. Cruelmente, ouvimos que é horrível ser quem somos e, pior, acreditamos nisso.
Muitos de nós, adultos LGBTQIA+, olhamos para trás e lembramos com pesar dessa época. Percebemos com tristeza que não temos mais como resgatar o tempo perdido. Que não tivemos as mesmas experiências de colegas cis héteros, não andamos de mãos dadas com nosso primeiro crush, não tivemos com quem celebrar o primeiro beijo na adolescência ou, em certos casos, nem beijamos antes da faculdade.
Algumas feridas desse período levam uma vida inteira para serem cicatrizadas. A terapia, algumas vezes imposta na infância numa tentativa desumana de nos “curar”, retorna na vida adulta para cuidar dos maus-tratos que sofremos.
Como adultos, precisamos debater a infância, que segue um território de disputa política
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Se hoje vemos no streaming seriados como Heartstopper ou Sex Education, que dialogam com adolescentes LGBTQIA+ e lhes dão um senso de comunidade e orgulho; se temos exemplos literários como a best-seller Elayne Baeta, que já vendeu mais de cem mil exemplares do romance lésbico O amor não é óbvio (Galera Record), nos anos 90, pelo contrário, não tínhamos referências positivas. Estereótipos eram reforçados, aumentando a sensação de solidão.
Não tínhamos em quem nos espelhar e na TV aberta nos deparávamos com bizarrices como o quadro do extinto Zorra Total em que o ator Jorge Dória olhava para a câmera e perguntava: “Onde foi que eu errei?”. Tudo porque seu filho Alfredinho era gay. Além de alvos de piada, o sofrimento e a vergonha que nossos pais sentiam por nós também eram usados como “humor”.
Axé e catarse
Em Selvagem, Haiut não retrata seus pais como algozes de sua criança viada, mas não se isenta de trazê-los à cena. A reconciliação com o passado emociona. A mãe lhe dá uma Barbie que ele pediu quando criança e o pai aceita gravar um vídeo dançando junto ao filho. Dança que ganhou destaque, e peço aqui licença para fugir do distanciamento que se espera de uma resenha e dividir o que vivi quando fui convidado a participar do espetáculo.
Como conta no livro, Haiut ganhou um concurso de axé em Salvador chamado “Mini Jacaré 98”, em referência ao dançarino do grupo É o Tchan. Rebolando e arrasando na coreografia, sua criança viada pôde se soltar sem receio, finalmente. Já no espetáculo, relembrando o feito, Haiut canta e dança sua própria composição de axé, “Coco melado”, disponível nas plataformas digitais. Quando assisti ao monólogo em sua estreia, em 2023, e a peça chegou nesse momento, Haiut nos revelou em monitores seu pai dançando ao seu lado. Em 2024, quando Selvagem ganhou ares de show, fui convidado a dançar no seu balé do Coco. De shortinho, rebolei e dancei ao seu lado para uma plateia animada que cantava em coro o refrão. Foi uma catarse poder cantar “Vamos ser viadooo!” diante de centenas de espectadores.
Então chegamos à última sessão do ano, e Haiut avisou que seu pai dançaria conosco. A arte, de fato, é capaz de salvar vidas e transformar famílias. Ao fim da dança, o pai leu um texto no qual se declarou ao filho, nos deixando com olhos marejados. Quantos de nós já desejamos que nossos pais não tivessem tido nenhuma questão com nossas identidades e sexualidades?
Quando falamos de meninos viados, especificamente, é muito comum que o drama familiar venha mais da figura paterna. Aquele homem cis hétero que espera e sonha que o filho seja hétero como ele e que performe o que se definiu tortuosamente como “masculinidade”. Assim, presenciar a declaração de amor de um pai ao filho viado, no palco de um teatro lotado, é comprovar que ainda podemos ter esperança de um futuro em que nossas crianças dissidentes sofram menos.
Selvagem estende a mão para aquelas crianças viadas que ainda são crianças e precisam saber que não estão sozinhas. E para aquelas esquecidas e machucadas dentro de nós. Não à toa, Haiut diz que foi procurando sua criança que encontrou seu adulto. E como adultos, precisamos debater a infância, que segue, também, um território de disputa política.
Basta falarmos em infâncias LGBTQIA+ para aparecerem políticos conservadores gritando a plenos pulmões para “deixarmos as criancinhas em paz”. A “defesa das crianças” se tornou um slogan recorrente da extrema direita, não só no Brasil. Nos Estados Unidos há, inclusive, uma batalha judicial para proibir drag queens de lerem histórias para crianças em escolas. Mas, como Haiut pergunta: “Quem defende o direito do menino que se apaixona pelo melhor amigo?”.
Com Selvagem, Felipe Haiut nos provoca a resgatar essa criança corajosa e rebolativa que só queria ser quem era. A reabrir espaços para ela. Como escreveu: “A criança viada que habita em mim saúda a criança viada que habita em você.”
Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Para todas as crianças viadas”
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