A escritora e tradutora Amara Moira (Renato Parada/Divulgação)

Livros e Livres,

Literatura em bajubá 

Ousado em forma e conteúdo, Neca legitima dialeto marginal das esquinas e terreiros brasileiros e ajuda a descortinar um universo novo nas letras

01mar2025 • Atualizado em: 26fev2025 | Edição #91 mar

A ideia de colocar em circulação um livro escrito em linguagem cifrada, só compreensível para pessoas mais versadas nas esquinas e nos terreiros brasileiros, sem qualquer glossário ou nota de rodapé, parece bastante ousado. Essa é precisamente a proposta de Neca, de Amara Moira, publicado no final de 2024 pela Companhia das Letras. Tomando como ponto de partida um texto mais curto que saiu na preciosa antologia organizada por Cristina Judar e Alexandre Rabelo, A resistência dos vaga-lumes (Nós, 2019), o primeiro autodeclarado romance em bajubá brasileiro vem a público com uma roupagem ousada também em termos de projeto gráfico: já em sua capa rosa-choque, traz uma boca colorida e entreaberta com “Neca” dentro.

Bajubá (ou pajubá, ambas as versões circulam indistintamente por aí) é como se chama a língua que muitas travestis, bichas e entendidos — para usar algumas das categorias identitárias difundidas durante o século 20, quando não havia ainda o acrônimo LGBTQIA+ — usavam para se comunicar entre si, com coragem e criatividade, em uma sociedade intolerante com suas existências. Bajubá, aliás, significa “segredo” no iorubá, nome que designa tanto um povo da África Ocidental como a língua por eles utilizada e que foi difundida nas religiões afrobrasileiras de terreiro, especialmente no candomblé.

Aos poucos, esses códigos linguísticos dos terreiros vão encontrando e se misturando com os das bichas e travestis, produzindo uma forma potente de comunicação e de defesa. É o bajubá que torna possível que essas pessoas se comuniquem sem serem compreendidas e repreendidas por policiais, clientes e transeuntes nos pontos de prostituição.

Importante registrar que esse encontro não é por acaso: são essas as religiões que sempre acolheram de modo mais aberto a presença de pessoas LGBTQIA+, ao contrário das religiões cristãs que tradicionalmente reproduziram (e ainda reproduzem) visões moralistas e conservadoras
sobre gênero e sexualidade.

Conforme avançamos na leitura, a sensação é a de que estamos aprendendo todo um vocabulário de um idioma novo e desconhecido. Vamos desbravando as expressões, recorrendo à busca na internet — já que os poucos dicionários de bajubá editados encontram-se esgotados — e anotando as mais diversas e esquisitas (para quem?) palavras: neca, ocó, nenar, taba, gigi, racha, mona, maricona, alibã, bafão, guanto, dentre outras. Todas são, além de carregadas de sentidos singulares, extremamente sonoras e curiosas. Mas não são só as questões formais do livro que merecem atenção. A narrativa também é bastante envolvente.

A transição de gênero e o exagero do tema do sexo são uma das chaves de leitura do romance

O eixo é uma conversa entre uma travesti mais velha que reencontra um antigo amor, anos mais jovem. Em tom confessional, ela vai mesclando lembranças e imaginação, reconstruindo suas memórias em voz alta. Alternam-se fragmentos dos mais diversos temas de muitas vidas: infância, relação com a família, trabalho sexual, violências sofridas, estratégias de sobrevivência e de defesa, relações com os homens, fetiches. Tudo intercalado com literatura e ícones célebres da cultura brasileira: de d. Pedro a Lula, de Mário de Andrade a Fernando Pessoa, de Carmen Miranda a Leona Vingativa.

A fala desenfreada é marcada pela rapidez e o humor ferino, típicos de uma estética camp que é tão cara à comunidade LGBTQIA+. No clássico ensaio de Susan Sontag sobre essa peculiar visão de mundo, “Notes On Camp”, de 1964, ela explica tratar-se da “predileção pelo exagerado, por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são”. Para a filósofa estadunidense, “o andrógino é seguramente uma das grandes imagens da sensibilidade camp”. E ela complementa: “o que há de mais belo nos homens viris é algo feminino; o que há de mais belo nas mulheres femininas é algo masculino”.

Nessa linha, a transição de gênero, suas agruras e delícias, são um capítulo à parte nas histórias relatadas. Essa confusão que desafia as fronteiras binárias da imposição social do gênero e o exagero do tema do sexo são uma das chaves de leitura desse depoimento de uma travesti enunciado na sua própria gramática de vida, a do bajubá.

O fato de estar viva para rememorar suas vivências já é algo inusual no país que mais mata pessoas trans pelo décimo sexto ano consecutivo, conforme o “Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2024”, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

Instrumento

Há ainda poucos estudos acadêmicos dedicados a compreender a história desse dialeto marginal que, ao mesmo tempo em que se prestava a comunicar, também era um instrumento de resistência e de autodefesa. Por isso, o livro de Moira, que tem formação sólida em estudos literários, ajuda a inserir no registro literário o bajubá e faz uma importante legitimação da língua, ainda vista como variante menos sofisticada em relação à norma culta da língua portuguesa.

Nesse mesmo sentido, engrossando o coro em bajubá na literatura, merece destaque outro lançamento recente de uma travesti argentina “babadeira”: Naty Menstrual. Sua coletânea de contos Chuva dourada sobre mim (Diadorim, 2024) contou com tradução para o português da própria Amara Moira. O título sugestivo, emprestado de um dos melhores contos, já antecipa o que se pode esperar da leitura. Os contos tratam de temas diversos, mas há muitos diálogos com as questões retratadas em Neca. A escrita simples e direta fica ainda mais rica pela feliz escolha da tradutora de usar o bajubá e não apenas o português.

As duas obras são o atestado de que não estamos diante de uma literatura menor, de um pequeno grupo da sociedade. Trata-se de uma representação literária, em forma e conteúdo, de uma universalidade que ainda pouco conhecemos. E que escritoras travestis como Moira, Naty Menstrual, Camila Sosa Villada e Alana S. Portero estão descortinando na construção de um universo novo nas letras.

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “Literatura em bajubá ”

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