O escritor carioca Kaio Phelipe (Divulgação)

Livros e Livres,

Tem coisa que não varia

Contos de Kaio Phelipe percorrem temas comuns da experiência homossexual e mostram como, nas periferias, ser gay é mais desafiador

01abr2025 | Edição #92

Todos nós sonhávamos em ser Carmen Miranda, coletânea de contos de Kaio Phelipe, retrata a colisão do cometa que é a vida gay com o mundo rochoso e árido da heterossexualidade. Também somos apresentados aos pedacinhos a que somos reduzidos depois do choque — a velhice, implacável, é um desses remanescentes.

A frase “não somos iguais, mas tem coisa que não varia” sai da boca de um dos personagens no último conto, “Com quem você estará deitado daqui a dez ou quinze anos”. O homem mais velho, autointitulado “bicha velha”, está na cama com um garoto de programa de 24 anos, com “o pau latejando dentro dessa Calvin Klein de camelô”. Ele prenuncia ao acompanhante a dureza dos dias em que nos daremos conta de que tônus, tato e tesão escorreram pelo ralo. O personagem fala da coragem necessária para levantar da cama, que é diferente da ousadia barata da juventude.

Cenas como essa percorrem o livro todo e funcionam como conversas sinceras no espelho, uma carta cujo remetente e destinatário têm o mesmo endereço: uma comunidade conhecida por sua toxicidade quando o assunto é aparência e performance.

A coletânea percorre temas já explorados, como o impacto do desejo reprimido de homens por outros homens, a busca por prazer nas saunas, a vida noturna arriscada e, por isso mesmo, agitada. São paisagens que colocam homens gays em situações vulneráveis. Nus, em busca de afeto, de alguma aprovação ou querendo desaguar seus desejos, os personagens exemplificam a pouca variação da experiência gay (ainda que não sejamos iguais). É que o modus operandi do preconceito é o mesmo de sempre e orienta até onde podemos ir e o que podemos desejar.

Em “Noite de festa”, quando o leitor entende o porquê do título do livro, somos apresentados a uma figura que trabalha na noite e que pensa toda manhã em largar a vida de shows. Ela diz:

Num mundo de papel passado, seríamos nós quem inventaríamos as alegrias, já que o mundo que nos restou é este, de existir em eterna manutenção, as contas precisam ser pagas…

Ela define com precisão, ainda que o diga bêbada, a fundação machista, misógina e homofóbica das sociedades patriarcais: “Qualquer rosto maquiado é e sempre foi peça fundamental de uma guerra”.

Franjas da cidade

Um dos grandes trunfos do quarto livro do autor carioca está no retrato da existência homossexual nas periferias urbanas — essa, sim, pouco vista na literatura mainstream. Atualmente no Brasil temos vereadores gays, congressistas gays, até mesmo um governador gay. Nas artes, atores muito conhecidos, cantores e apresentadores de televisão abertamente gays. As referências são vastas e o mundo parece ter se expandido para a letra G da comunidade LGBTQIA+.

Entre Higienópolis e a Santa Cecília, em São Paulo, e do Baixo Gávea ao Leblon, no Rio de Janeiro, homens gays quase mimetizamos a vida heterossexual. Mas ser bicha longe do asfalto ainda é desafiador. No morro ou da ponte para lá, definitivamente os gays não são todos iguais.

“Existe uma coisa linda que só acontece quando você é bicha e gosta muito de alguém, que é ficar automaticamente mais atento ao que está acontecendo ao redor quando vocês estão juntos”, diz o personagem do conto “As palavras” que topa ir com o namorado a um show onde, dias antes, um homem gay fora degolado. “Foi pego com outro cara e aí foi degolado, sabe?”.

Nas franjas da cidade, ainda precisamos sonhar em ser um outro alguém para dar conta de sermos nós mesmos. Em “É mais difícil sobreviver durante o silêncio da madrugada” somos apresentados à história de dois vizinhos. Eles cresceram juntos, porém nunca se falaram. Aos vinte e poucos anos, percebem que sentem atração um pelo outro. Só um deles está no armário. Para que transem, vão a motéis. Para que se abracem, vão à praça do bairro, de madrugada, com medo de assaltos e dos olhares de vizinhos, tão perfurantes quanto balas de armas de fogo. Para que andem lado a lado, vão no mesmo ônibus, mas em fileiras diferentes. Parece o relato de uma vida gay num passado distante, mas é uma história ambientada em algum bairro perto da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, num momento em que já existe aplicativo de táxi.

A violência homofóbica acompanha todos os personagens, guiados pelo medo de serem descobertos

A violência homofóbica acompanha todas as histórias. Não exatamente a violência gráfica, mas aquela guiada pelo medo constante que seus personagens têm de serem descobertos.

A gente se recusa a demonstrar afeto, a ignorar os olhares e as ofensas, mas vez ou outra chega o momento em que a gente solta as mãos e abre os olhos quando está beijando na boca.

Os leitores gays que experimentaram algum tipo de afastamento do lugar onde nasceram vão se sentir especialmente contemplados. Seja pela mobilidade social ou para escapar da violência, o distanciamento de pessoas LGBTQIA+ de seus núcleos familiares são bastante comuns.

Trabalhos como os de Annie Ernaux, Édouard Louis e José Henrique Bortoluci exploram o afastamento entre dois mundos, aquele da família e do que se constrói diante de quem, pela intelectualidade, avança para além do quintal de casa. O trabalho de Kaio Phelipe também cruza esse caminho, ainda que percorra outras veredas e não se proponha à autoficção.

Todos nós sonhávamos em ser Carmen Miranda é especialmente tocante porque nos faz pensar no caminho de volta que gays periféricos sempre fazemos, seja para um almoço de domingo, para um casamento de um parente distante ou para votar no domingo de eleição. Quando regressamos, nos defrontamos com uma versão que deixamos para trás, e que sempre dá um jeito de nos assombrar.

Como quem parece ter vivido mil vidas, Phelipe escreve em uma das histórias a frase que melhor define quem precisou matar uma versão de si mesmo e assumir uma nova: “hoje, adulto, ainda me confundo com o que é meu e o que é parte da fraude que arquitetei”.

Quem escreveu esse texto

Renan Marinho Sukevicius

É jornalista, apresentador e autor de Quase Verão (Diadorim).

Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025. Com o título “Tem coisa que não varia”