Primeira pessoa

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Emmanuel Carrère repassa sua obra, cita arrependimentos literários e rejeita o rótulo de autoficção: ‘estou presente como narrador’

01fev2025 | Edição #90 fev

No final do ano passado, acomodado na ampla sala de seu apartamento parisiense, nos arredores da Place de la République, Emmanuel Carrère contou ter recém-chegado da Ucrânia e estar em fase de montagem de um documentário para o canal de TV Arte. A ideia é fazer um retrato do país em guerra por meio de encontros nos trens: “O espaço aéreo da Ucrânia está fechado, e todos têm um motivo para ir de um lado para o outro. A vantagem dos trens é que as pessoas estão lá, à disposição, não é como abordá-las na rua”, diz. “Em Kiev não se sente a guerra. Já ao redor do front, as pessoas são mais amargas, pensam que tudo recai sobre elas, e que quanto mais tempo passa mais o resto do país ignora o conflito.”

Carrère é um jornalista e documentarista fascinado pelo outro e suas histórias íntimas. Também é roteirista e cineasta, com trabalhos com a autora de romances policiais de sucesso Fred Vargas e a renomada atriz Juliette Binoche. Mas sua principal faceta, a qual dedica mais tempo, é a de escritor de livros — com oito de seus títulos publicados no Brasil pela Alfaguara e um pela Record.

“Tenho esse tripé de profissões, escrever livros, reportagens e roteiros, e tive a chance de fazer filmes. É uma questão de equilíbrio psíquico. Na escrita de livros, um autor depende muito de si mesmo — o que pode me lançar em estados depressivos. Ter outras atividades mais tranquilas é muito importante”, diz.

O premiado escritor francês, aos 67 anos, rejeita a etiqueta de “auto-ficção” para suas obras lançadas a partir da publicação de O adversário, em 2000, sobre a vida de Jean-Claude Romand, um médico impostor que assassina sua família para evitar ser desmascarado. Sem saber como desenvolver a escrita do texto, encontrou a solução na forma do “eu”: “Na manhã de sábado, 9 de janeiro de 1993, enquanto Jean-Claude Romand matava sua esposa e filhos, eu estava com minha família em uma reunião na escola de Gabriel, nosso filho mais velho”.

Carrère acaba de colocar o ponto final em um livro sobre sua família, mas que não ficou de seu agrado

Para sua literatura, o escritor prefere a definição de “romances não ficcionais”, narrados na primeira pessoa. Seu mais recente, V13 — como ficaram conhecidos os atentados da sexta-feira (vendredi, em francês) 13 de novembro de 2015 —, é um mergulho nos processos judiciais envolvendo as vítimas e réus dos trágicos ataques terroristas na capital francesa. As audiências duraram de setembro de 2021 a junho de 2022, assistidas presencialmente por ele do primeiro ao último dia.

Ioga, sua obra anterior, é um profundo e reflexivo testemunho sobre um período de violenta depressão que o levou à internação psiquiátrica, vivido em meio às crises do mundo. O estado depressivo também está presente em O reino, no qual o autor, hoje agnóstico, relata seus três anos de devoção cristã, mesclados a uma rigorosa pesquisa sobre as origens do cristianismo. Em Outras vidas que não a minha, a partir de uma tragédia na família de sua então mulher, aborda “a vida, a morte, a doença, a pobreza extrema, a justiça e, sobretudo, o amor”, em sua própria descrição.

Escritor prolífico, em Limonov narra a história de um personagem real — e que conheceu —, que foi bandido na Ucrânia, ídolo do submundo soviético, vagabundo, mordomo, escritor da moda em Paris, soldado nas guerras dos Bálcãs e líder de um partido de jovens na Rússia pós-comunista.

Após um ano de escrita, Carrère acaba de colocar o ponto final em um novo livro, sobre sua família, mas que não ficou de seu agrado. “Não está bom. Meu editor leu e gostou muito, mas do jeito que está não me convém. E tenho dificuldade em saber o porquê. No momento, preciso fazer outras coisas, como essa reportagem na Ucrânia, e talvez vá retomá-lo daqui a um ano, não sei. É como uma terra em pousio, que se deixa um tempo sem cultivo para que depois possa germinar novamente”.

Você começou a escrever imitando os escritores francês Jules Verne e o norte-americano H.  P. Lovecraft. O que você via na escrita deles?
Criança, caí nos livros que davam medo. E Lovecraft é o líder dos livros que dão medo. Devo ter começado a ler esse tipo de literatura aos doze anos e fui fisgado por toda vida. Já Jules tinha essa ideia de viagens extraordinárias. Gostei muito na época, mas hoje não penso em relê-lo. Ainda releio Lovecraft vez ou outra, com uma mistura de temor e admiração por algo que não se parece com nenhuma outra coisa.

Você diz que nenhuma frase teve um efeito tão poderoso em você como uma do conto “O testemunho de Randolph”, de Lovecraft: “Seu idiota, Warren está morto!”. Por quê?
É pela maneira como essa frase aparece no final do conto, de repente. Temos a impressão de alguém que desce em um tipo de tumba, e ouve-se dele palavras cada vez mais assustadas e fora de ordem. E essa frase é pronunciada por uma outra voz. Tem também a forma do texto, com a frase em itálico. Para mim havia algo extraordinário nisso tudo. Mas, é verdade, comecei a escrever sob o impacto disso. É uma espécie de mantra para mim.

Você realmente aprecia histórias que amedrontam…
Sempre amei isso. Sempre amei a literatura fantástica e, sem me vangloriar, poderia dizer que sou uma autoridade nisso. É muito difícil citar um título da literatura fantástica norte-americana dos anos 20 ou 50 que eu não conheça. Poderia facilmente compilar antologias, de tanto tê-la lido.

Hoje, você diz não conseguir se reconciliar com o Carrère adolescente, aterrorizado consigo mesmo, com a vida e com os outros. Como era nessa época?
Eu fui um adolescente muito inquieto, complexado, dolorido, que não gostaria de ser novamente. Foi um período difícil. Tive uma infância muito feliz, mas a adolescência foi muito ruim. E comecei a escrever nessa época.

Foi a partir do sucesso de O bigode (1986), que por pouco não ganhou o prêmio Goncourt, o mais importante da francofonia, que você decidiu fazer da escrita sua profissão?
Havia escrito antes dois romances, que não têm um grande interesse. Aprendia escrevendo. E o primeiro livro que ao mesmo tempo teve sucesso e tive a impressão que valia algo foi O bigode. E, mais uma vez, foi um relato do fantástico. Tinha vontade de escrever e disse então que me tornaria escritor.

O escritor, roteirista e diretor Carrère em março de 2003, em Paris (Jean-Marc Zaorski/Gamma-Rapho via Getty Images)

Acabei sempre vivendo como escritor, exceto por uma dezena de anos que ganhei a vida como jornalista, o que continuo a ser hoje — gosto disso, penso que seja algo bastante fértil. Em determinado momento, me propuseram escrever roteiros, o que foi também uma forma de ganhar a vida por muitos anos, e ainda hoje. Adaptei quase todos os romances de Fred Vargas para a TV. É algo que me dá prazer. Se me faltar inspiração para escrever livros, ao menos tenho um tipo de competência artesanal, sei fazer essas outras coisas.

Em um momento de pane de inspiração, seu agente, François Samuelson, salvou-o ao propor a escrita de uma biografia. E você escreveu a história romanceada do escritor Philip K. Dick, Je suis vivant et vous êtes morts (1993), um de seus livros preferidos. Como foi?
Eu gosto muito desse livro mesmo. E não é um dos meus livros conhecidos. Adorei escrevê-lo. O risco quando se escreve uma biografia é que chega um momento em que ficamos fartos do personagem. Nunca foi o meu caso com Philip K. Dick, e ele era uma pessoa insuportável. Mas sempre gostei muito dele. O escritor é imenso. Uma grande parte da cultura popular atual vem de Dick, saibam ou não disso.

‘Um autor de livros depende muito de si mesmo — o que pode me lançar em estados depressivos’

Matrix é uma descendência direta dele. E esse livro me salvou de um período de profundo marasmo. François me disse que assim não dava mais, que era preciso que eu escrevesse algo. Eu estava sem ideias e ele me sugeriu uma biografia. E pensei que Dick era uma boa ideia.

O adversário marca uma virada na sua trajetória, pois a partir desse livro você parou de escrever ficção.
Foram sete anos escrevendo esse livro, com uma interrupção para lançar La classe de neige (1995), que é um tipo de duplo fictício de O adversário. Foram também anos bem difíceis. Esse livro foi terrível de escrever. Não conseguia encontrar o bom distanciamento. Havia esse homem real [o assassino Jean-Claude Romand] — era um ser humano —, deveria ser respeitoso em relação a ele. Humanamente foi algo complicado, sob todos os pontos de vista. 

A partir daí, passei a escrever na primeira pessoa. Não foi algo consciente. Escrevi dois livros autobiográficos, Um romance russo (2007) e Ioga (2020), os outros não são, mas são escritos na primeira pessoa. Mesmo Limonov (2011), O reino (2014) ou Outras vidas que não a minha (2009) são na primeira pessoa, que é uma espécie de autoridade narrativa. E tenho dificuldade em proceder de outra forma.

Hoje não tenho o desejo de fazer diferente, e penso que não saberia mais fazê-lo, mas quem sabe um dia escreverei um livro de ficção.

Por que a frase “E ele iria se perder, sozinho, nas florestas do Jura”, que encerra o artigo de Florence Aubenas no jornal Libération sobre o caso Romand, se tornou um mantra seu?
Essa frase abre para um tipo de paisagem florestal, nevada, misteriosa, que toca ao mesmo tempo a infância e algo perigoso e ameaçador. É como se nela houvesse uma abertura poética sobre o que poderia se tornar esse livro. É uma frase muito forte pra mim.

Você diz que poucos livros foram escritos em um “desconforto moral absoluto” como A sangue frio (1966), no qual Truman Capote relata o assassinato de uma família. Como foi escrever sobre o caso Romand?
Eu senti esse desconforto moral, mas não de maneira tão forte. A sangue frio, para mim, é um livro imenso. Penso que toda pessoa que escreve a partir de um fato do noticiário, o faz sob a sombra dele. Não sei quantas vezes já o li, e cada vez que releio fico impressionado com sua força narrativa e a beleza de sua prosa. É uma obra-prima.

Mas Capote refutou a primeira pessoa, enquanto era um dos protagonistas do livro. Ao mesmo tempo, era o melhor amigo dos dois criminosos, e talvez estivesse até um pouco apaixonado por um deles. Ele passava o tempo a dizer para eles que haveria um pedido de clemência, que iriam recorrer aos melhores advogados, e na realidade seu interesse é que fossem enforcados, pois esse era o final do livro. Desconforto moral é uma expressão leve para isso.

O meu foi menor, pois fui honesto em minha relação com Romand, não menti para ele, disse que não era seu advogado e não estava escrevendo um livro a seu serviço. E ele compreendeu muito bem. Não estava na mesma situação de Capote. A relação era muito desconfortável, é inusitado estar em contato com alguém que matou toda a sua família, mas não tenho a impressão de tê-lo traído.

De 1991 a 2021, você escreveu crônicas judiciárias
Sempre gostei de processos criminais. Muitos escritores adoram isso. É algo apaixonante. Aqui no Palácio de Justiça, muitas pessoas vão assistir às audiências como se fossem a uma sessão de cinema. É a humanidade. E é um teatro, um cerimonial. A crônica judiciária é um gênero jornalístico muito literário. Há jornalistas que fazem artigos e reportagens sobre casos criminosos, mas os cronistas judiciários assistem todos ao mesmo espetáculo, como os críticos de cinema. O que difere não é a informação, mas a sensibilidade, o olhar, o talento. Por isso os cronistas judiciários são, entre os jornalistas, os mais literários. E eles adoram o que fazem. Não trocariam isso por nada. Pascale Robert-Diard, do jornal Le Monde, que é formidável, faz isso há trinta anos.

Em V13 (2022), você diz que lhe interessa, por um lado, a ideia abstrata de justiça; por outro, o teatro da justiça. O que essa cobertura para a revista Le Nouvel Obs, que virou livro, mudou em sua ideia de justiça e de verdade?
Honestamente, o processo do V13 expôs uma ideia elevada da Justiça. Claramente, o Estado francês decidiu que seria uma vitrine para mostrar que o direito era a resposta apropriada à barbárie. Uma ideia que poderia parecer virtuosa, mas ao mesmo tempo acho que funcionou. Todos os papeis da Justiça foram muito bem representados, o que possibilitou um pouco dessa virtude catártica. Muitas pessoas entre as partes civis estavam contentes que o processo pôde acontecer.

Emmanuel Carrère com sua mãe, a historiadora Hélène Carrère d’Encausse, em maio de 1986 (Micheline Pelletier/Gamma-Rapho via Getty Images)

Por temperamento, sou bastante desconfiado dos grandes discursos, mas nesse caso foi diferente. E a experiência foi apaixonante mesmo quando era tediosa — e foi muitas vezes tediosa. Mas houve uma espécie de comunidade que se criou. O início foi insuportável por causa da violência e intensidade dos testemunhos dos sobreviventes e familiares das vítimas. Durante dois meses eu não dormia à noite e acordava chorando. Acho que foi o caso para todos. Mas depois tomou um ritmo de cruzeiro, e gostei muito de escrever os artigos semanalmente para a revista. Nunca tive a angústia da página em branco, pois sempre havia coisas demais para contar. Foi uma experiência excepcional.

Você diz que normalmente somos fascinados pelos criminosos, mas que aqui as vítimas foram destaque.
São os criminosos que comumente achamos interessantes. Quando escrevi O adversário, o que interessava era Romand. E no V13 foi o contrário. Entre as centenas de vítimas, houve depoimentos de uma força extraordinária, de personalidades muito fortes, enquanto os caras no banco dos réus eram deploráveis.

Que lições tira hoje de seu período de conversão cristã, entre 1989 e 1993, descrito em O reino?
É um período distante, mas o Evangelho continua a ser um tipo de lar para mim. Acho que não é preciso ser crente para ser tocado pelo Evangelho, sinto que há uma espécie de verdade profunda que se exprime. Tentei contar disso nesse livro, algo voluntarista da minha parte, como se fosse me salvar em um momento em que precisava ser salvo. E o que me salvou foi sobretudo o fato de escrever um livro [risos]. Mesmo hoje me sentindo muito longe de tudo isso, passei anos apaixonantes e felizes escrevendo esse livro, que tenta atingir um tipo de núcleo do cristianismo. Não sei se consegui.

Você diz ter rejuvenescido com o tempo, em grande parte graças ao trabalho, e aprecia a definição de Freud de saúde mental: a capacidade de amar e de trabalhar.
Essa definição é muito justa. Outra de Freud que gosto muito é quando ele diz que o objetivo da psicanálise e da evolução na vida é passar da infelicidade neurótica à infelicidade ordinária.

‘Não se pode ser indecente comparando sofrimentos de burguês parisiense com as pessoas em Gaza’

A infelicidade neurótica é a que fabricamos nós mesmos, a ordinária é aquela a qual não podemos escapar, ou seja, a doença, a morte de pessoas que amamos. A saúde mental é, sem dúvida, poder ser afetado pela infelicidade ordinária e um pouco menos pela neurótica.

Em livros como Outras vidas que não a minha, no divã de seu psicanalista e na vida em geral você diz ter se queixado da dificuldade em viver uma verdadeira relação amorosa. Ainda é assim?
Imagino que essa dificuldade de amar existe em muitas pessoas, mas eu tenho tendência de olhá-la com uma lupa. Hoje estou bem, estou amando.

Você foi diagnosticado com transtorno bipolar e sofrimento moral intolerável, e chegou a ser internado em hospital psiquiátrico, experiência que conta em Ioga. Como convive hoje com esses termos médicos?
O sofrimento moral intolerável felizmente passou. Foi um tempo da vida que não desejo a ninguém, e que é definido objetivamente por essas palavras. Já o transtorno bipolar, não tenho em um grau muito elevado. Não faço parte das pessoas que ficam peladas em plena rua. Para algumas, isso destrói completamente a vida, e para outros é mais moderado, o que é o meu caso. Facilita nomear as coisas. E é verdade que a química também ajuda. Aprendemos a viver com isso.

Você começa o epílogo de Ioga dizendo “continuamos a não morrer”, e encerra com “estou plenamente feliz por estar vivo”. Continuar a não morrer não é a mesma coisa que estar feliz em viver.
Essa frase está na carta de um adolescente, ao dar notícias a sua avó, durante os grandes expurgos soviéticos. Ele diz “não se preocupe, vó, eu continuo a não morrer”. Seria indecente me comparar a ele. Não se pode ser indecente comparando seus sofrimentos de bobô [contração de burguês-boêmio em francês] parisiense com os das pessoas em Gaza, por exemplo. Tenho a grande sorte de fazer parte daqueles que ganham a vida fazendo o que gostam. Por outro lado, é preciso respeitar seus sofrimentos, admitir que eles existem e não tratá-los com desprezo.

Um romance russo teve para você as “virtudes catárticas” esperadas. Foi um livro em que abordou de frente certas dores e que lhe fez bem?
Considero esse livro um pouco embaraçoso hoje. A forma como falei de minha companheira da época é algo que não repetiria com ninguém. Há ainda um exibicionismo no livro que também não faria novamente.

Durante um longo período, a escrita foi para você um terreno de depressão e angústia, mas com o tempo, para sua surpresa, passou a ter prazer em fazê-lo. O que mudou?
Depende. Tive muito prazer em escrever O bigode. Também em escrever O reino, no qual estive imerso e durou bastante tempo. Gostei de escrever Limonov. E também V13, que foi relacionado ao tempo jornalístico. Tive épocas de não conseguir escrever, de me colocar pressão. Não se tornou com o tempo um caminho repleto de rosas. Mas com a idade, as coisas parecem menos difíceis. Sabe-se melhor como driblar esse tipo de coisa.

Você se diz tocado por livros e filmes que trazem ao mesmo tempo as dimensões “horizontal” — o amor, a amizade, as alianças — e “vertical” — as relações entre gerações. Hoje, mais pela vertical. Por quê?
Gosto de ver retratadas as relações entre pessoas da mesma geração, amorosas, de amizade, e também entre gerações, pais, filhos. E gosto quando essas duas dimensões estão no mesmo livro, me parece uma representação mais completa da vida.

A morte dos pais nos situa nessa corrente de gerações. Nos interrogamos mais sobre o que há antes e depois de nós. Tenho a impressão de ser mais sensível a isso hoje do que quando era mais jovem. Antes, o que me interessava eram meus amigos e meus amores. O livro que acabei de terminar é sobre a história da minha família — escrevi com muito prazer e sem dificuldade, mas ao mesmo tempo sinto que algo não está bom nele.

Você é contra a definição de “autoficção” para seus livros
O que faço não chamo de autoficção, porque não é isso. Uma grande parte dos meus livros é algo um pouco estranho: consiste em colocar meu próprio olhar em um objeto externo, como o começo do cristianismo para O reino ou o fim do comunismo em Limonov. Não são livros autobiográficos, mas estou presente como narrador, e relato minhas reações, sentimentos, impressões. Tenho dificuldade em chamar isso de autoficção.

Prefere “romances não ficcionais”.
Isso sim. A forma é o romance. Tenho a impressão de utilizar todos os recursos narrativos do romance. Essa foi a denominação de Truman Capote para A sangue frio, “non-fiction novel”, o que me parece justo.

Você diz que há poucos verdadeiros romancistas.
Penso que a pulsão de inventar uma história é menor do que a de tentar contar sua experiência do mundo. O romance não é majoritário. Mas sou um grande leitor de romances, adoro. Sempre li muito.

O que está lendo atualmente?
Recentemente escrevi um artigo no Le Monde sobre o livro Cabane, de Abel Quentin, que gostei muito. Sou um leitor eclético. Releio Lovecraft de vez em quando. A literatura brasileira não conheço muito, exceto por Clarice Lispector. Do México, gosto de Guadalupe Nettel. Confesso que o mundo literário anglo-saxão me é muito mais familiar.

Para você um dos critérios que determinam a fronteira entre ficção e não ficção é o fato de mencionar os personagens pelo nome verdadeiro, um “contrato de leitura”, como diz, que lhe interessa como autor.
É verdade. Quando você coloca os nomes verdadeiros na narração, assume uma responsabilidade. No cinema, é bastante clara a diferença entre um documentário e uma ficção: num caso há atores que interpretam os personagens, e no outro são os verdadeiros personagens. Na literatura é mais complicado.

‘Escrever não se tornou um caminho repleto de rosas, mas com a idade as coisas parecem menos difíceis’

Em Ioga, digo que há um personagem semi-imaginário. Não gosto disso, não é algo que me orgulho de ter feito — não do ponto de vista moral, mas artístico e deontológico. Gosto de Ioga, mas é um pouco desequilibrado, por diversas razões: há episódios da minha vida que não podia abordar [Carrère foi processado por sua ex-mulher], mas que eram necessários para a compreensão de certas coisas. Eu me apressei na escrita desse livro, quis me livrar dele. Teria sido melhor deixá-lo repousar e retomá-lo depois.

A sua forma de escrever é marcada pelo cinema, como uma montagem?
Gosto de jorrar a matéria, e depois começar a organizá-la. Estranhamente, o que o cinema realmente me acrescentou como escritor foi a familiaridade com o trabalho de montagem.

Seu filme Entre dois mundos (2021), baseado no livro de Florence Aubenas sobre uma escritora que se mistura a um grupo de faxineiras, interpretadas por atrizes não profissionais, foi um projeto da atriz Juliette Binoche.
Sim. Foi uma ideia dela, não minha. Ela é sempre incrível, mas nesse caso foi ainda mais, porque era um projeto dela. Ela realmente se engajou. Havia o risco de o filme não funcionar. E se tem algo de especial, é por causa dela, que soube deixar essas mulheres confiantes de forma extremamente generosa, natural. Gosto desse filme.

Algo que funciona na psicanálise e na literatura, na sua opinião, é associar elementos que aparentemente não combinam, na aposta que resultará em algo do “reino do indizível”. “Por que fazer simples se podemos complicar” é sua divisa?
Eu fiz muita análise, por cerca de trinta anos não corridos. Acredito muito nisso que você mencionou. Uma das bases da psicanálise é esse sistema de associação que faz com que coisas que parecem não combinar, de fato combinem. Eu procuro fazer simples, mas a partir da complexidade das coisas e do mundo. Buscar uma forma e uma linguagem simples para agarrar o máximo de complexidade.

Para você, tudo que pensamos merece ser escrito, embora não necessariamente conservado. Seria o que procura fazer grande parte da literatura: reproduzir o fluxo de pensamento, como Montaigne, Sterne e Diderot. São eles suas referências?
É uma forma de literatura, à qual sou ligado. Há uma frase de Thomas Bernhard que diz que não é complicado escrever, basta baixar a cabeça e tudo que está nela cai sobre o papel. Montaigne, Sterne e Diderot são bons exemplos disso. São autores de uma grande liberdade. Adoro isso. Mas gosto também de outros que podem ser o oposto disso, que não têm esse tipo de fluxo de pensamento.

Você já escreveu um ensaio sobre a ucronia [gênero literário que se refere a um período imaginário] e se considerava um especialista no tema. É um assunto que ainda lhe interessa?
Hoje o que se faz são distopias. É o que funciona. Tenho um amigo editor que me disse que um em cada dois livros que recebe é sobre uma distopia. É uma variação da ucronia, que conta como teria se tornado o mundo se tivesse seguido um outro caminho.

Você se angustia com o que se passa hoje no mundo?
Sim. É um pouco banal dizer isso, mas me angustia mais por meus filhos. Eu fiz minha vida. Tive a chance de viver minha juventude numa sociedade em que não havia desemprego, fazia reportagens por todo canto do mundo, os jornais tinham recursos para isso. Era uma situação histórica favorável. Meus filhos vivem num mundo cada vez mais assustador. Não vejo como não ser terrivelmente pessimista, ou então é acreditar em Papai Noel. Há uma conjunção de fatores absolutamente catastróficos, o aquecimento climático hoje é irreversível, por exemplo. 

Num artigo contando o fiasco de uma entrevista que fez com Catherine Deneuve, você diz que uma das raras perguntas que provocaram uma resposta interessante foi “o que teria feito se não tivesse se tornado atriz?”. O que você teria feito se não tivesse se tornado escritor?
Teria talvez feito algo relacionado ao direito, quem sabe seria advogado. Se não, o que teria adorado, mas que é totalmente inconcebível para mim, seria cientista. Sou tão ignorante que seria impossível. Ou músico. Escuto muita música, sobretudo música clássica. Adoraria ser pianista.

Quem escreveu esse texto

Fernando Eichenberg

É escritor e correspondente internacional na França, é autor de Entre aspas, v. 1 e 2 (L&PM).

Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Primeira pessoa”

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