Encontro de Leituras,
A prosa da melancolia
Comparada a Clarice Lispector, a portuguesa Maria Judite de Carvalho tem sua obra completa publicada no Brasil
01ago2024 • Atualizado em: 06ago2024 | Edição #84A melancolia e o desemparo marcam a prosa da escritora portuguesa Maria Judite de Carvalho (1921-1998), considerada um dos principais nomes da literatura de Portugal e cuja recepção ganha impulso no Brasil com a publicação de sua obra completa: seis volumes que reúnem os contos, romance, crônicas, poesia e teatro da autora. A coleção, que já havia sido publicada em Portugal pela editora Minotauro, do Grupo Almedina, chega ao continente americano pelo braço brasileiro do grupo.
Comparada à Clarice Lispector (1920-1977), com quem compartilha o idioma e a intensa vida interna de suas personagens femininas, Maria Judite de Carvalho cria uma ficção habitada por mulheres trágicas. As doentes são internadas; as solteironas aguardam o casamento que nunca acontece; e as casadas são traídas ou abandonadas. As viúvas enfrentam a penúria econômica e a solidão afetiva, mas também surpreendem com suas reações — como Joana, protagonista do conto “A noiva inconsolável”. Quando o namorado morre afogado, Joana passa a “sorrir ao pai, ao irmão, às amigas” porque era “de súbito outra pessoa”. De rapariga sem propósito claro, passa a ser “a noiva inconsolável do homem que morrera”, atribuindo sentido à própria existência.
O noivo morreu afogado, o que desperta um medo infantil em uma de suas amigas. “Meu Deus, não vou comer peixe durante muito tempo”, confessa a rapariga que acredita que haverá um pouco do homem na carne dos peixes do mar. É como se as personagens estivessem sempre esperando uma tragédia iminente ou constantemente traumatizadas com as histórias de bebês perdidos, maridos que ficam paralíticos e orfandade.
A relação com a biografia trágica da escritora órfã pode ser inferida em certas personagens e situações
As crises existenciais são uma constante, inclusive entre os homens. O tabelião Boaventura, do conto “O aniversário do Natalício”, questiona-se: “Que estou eu a fazer neste mundo?”. Ele precisou completar cinquenta anos “para compreender que não estava a fazer nada neste mundo”.
Inquietações do tipo, em certas histórias, levam à ideação do suicídio diante da angústia e da solidão. Há eventos quase fantásticos, como quando uma menina de onze anos cai da sacada e morre no meio da rua, no conto “Uma varanda com flores”. A garota estava sendo observada por uma vizinha do prédio da frente. Maria Judite de Carvalho cria um efeito de indefinição do enredo em que tanto a menina pode ter caído por acidente, ter se jogado ou até ter sido induzida pela vizinha.
A autora domina o recurso que cria hesitação no leitor diante do que é posto pelas personagens. A jovem do conto “Rosa numa pensão à beira-mar” realmente tentou se matar ou, como diz ao homem que a encontrou, só queria dormir? “Quer dizer que não foi… que não tentou…?”, o homem pergunta. O uso das reticências corrobora o artifício de elaborar situações dúbias e dá espaço para que o leitor se pergunte aquilo que o personagem interroga indiretamente.
Cronista ácida
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Em suas crônicas, Maria Judite de Carvalho liberta-se do recurso do narrador ficcional dos contos e assume sua própria voz. Essas permitem que os leitores brasileiros conheçam uma faceta que foi familiar aos lisboetas das décadas de 60 e 70, quando a escritora trabalhou no Diário de Lisboa.
Na época, mulheres como ela já ocupavam espaço na imprensa, embora a crônica ainda fosse de predominância masculina e burguesa. Nelas, é nítida a mudança de tom e estilo. Nos contos, a relação com a biografia trágica da escritora órfã pode ser inferida em certas personagens e situações. Já nas crônicas, a escritora se expressa como Maria Judite e não como Marianas, Flores, Almas e Josefas — algumas de suas personagens.
É nas crônicas que descobrimos uma mulher que olha para o cotidiano de forma lírica, mas nem por isso menos crítica. O conteúdo é, quase sempre, mais leve do que o de sua ficção, mas o tom, mais ácido. A sintaxe reflete a forma enxuta do texto de jornal. As frases são mais curtas. A pontuação também é reflexo da mudança de estilo. Se nos contos e no romance abundam as vírgulas, que permitem longos encadeamentos, nas crônicas pulula a variedade: há o uso mais livre de interrogação, travessão e reticências, em um simulacro da oralidade.
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Nos textos publicados no Diário de Lisboa, há mais perguntas, criando quase uma conversa com o leitor do jornal ou consigo mesma. “Sentir-se-ia inferiorizado?”, sobre o homem branco que recebeu um coração transplantado de um negro; “Oitenta anos, mais?”, sobre a idosa sem memória de uma “história que poderia ser um conto mas não é, aconteceu”; e “com algo de asa ou de enlace de fita, não é verdade?” sobre a expressão enlaces matrimoniais para denotar casamento. Ela ainda escreveu crônicas do tipo diário sob o pseudônimo de Emília Bravo, reunidas no Volume VI.
Há temas que se entrecruzam. É o caso do trapezista que, numa crônica do quarto volume sobre o circo como metáfora da vida, surge com seus “voos relativamente interestelares”. No conto “O homem voador e a mulher que não tinha asas”, do Volume III, um menino pobre que não tinha dinheiro para ser piloto de corrida se transforma em trapezista e se junta a uma família circense. Ele tem final trágico, como tantos outros personagens. Entretanto, contrariando o horizonte de expectativa que se instala no leitor, a tragédia não ocorre durante sua apresentação nas alturas.
Maria Judite de Carvalho, aliás, é especialista em armar cenários que indicam um rumo que é desviado para gerar frustração. Tal efeito literário é uma característica inconfundível de sua obra. O trapezista do conto, registre-se, é uma exceção entre as personagens masculinas da escritora. Os homens que habitam sua ficção são, majoritariamente, burocratas ocupando cargos inferiores na hierarquia de repartições públicas. Os mais ricos (médicos, militares ou embaixadores) são cheios de culpas e frustrações. Não raramente, adúlteros. Entre os contos aparecem homens doentes e até paralíticos, dependentes de suas infelizes mulheres, numa inversão de papeis que não empodera as personagens femininas — apenas as sobrecarrega — tampouco faz algum tipo de justiça quando o tema é equidade de gênero. Uma prosa, realmente, marcada por melancolia e desamparo.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
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