Literatura infantojuvenil,

Memórias de um quintal

Em ‘Era uma vez um quintal’, neta de Luís Carlos Prestes conta sobre o outro avô, João Massena Melo, desaparecido durante a ditadura militar

11jan2024 | Edição #76

Se o quintal de dona Ecila Massena pudesse falar durante os anos 1960 e 1970, ele não o faria. O local que sediava festas e encontros entre familiares no subúrbio carioca se transformou, no período da ditadura militar, em um ambiente propício aos cochichos e às piras que, vira e mexe, queimavam documentos que continham ideias sobre uma realidade distante do medo. 

Atualmente, o quintal mal tem papas na língua. Quem conta o que o espaço presenciou é Andreia Prestes, neta de dona Ecila e seu João Massena Melo, ex-vereador e deputado desaparecido em 1974 — só em 2019 a família recebeu um atestado de óbito, no qual o Estado brasileiro se responsabilizava pela morte. A escritora, que também é neta do político e líder comunista Luís Carlos Prestes, já havia relatado a experiência de exílio que viveu com os pais no livro Lila em Moçambique (Quase Oito, 2020), resenhado por Mia Couto na revista dos livros, e agora retoma em Era uma vez um quintal (Pallas Míni) os ecos que a ditadura deixou na família. Em entrevista para a Quatro Cinco Um, Andreia ressalta a importância de escrever sobre memória, história e esperança para o público infantojuvenil. 


Era uma vez um quintal, de Andreia Prestes

De onde surgiu a vontade de recontar uma história com um tema delicado e, ainda por cima, familiar e pessoal? 
Tem uma frase da escritora Toni Morrison de que gosto bastante: “Se há um livro que você quer ler, mas não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo.” No Brasil, nós lidamos com muitos silenciamentos e poucas respostas efetivas do Estado em relação às violências praticadas durante a ditadura militar. É curioso termos tão poucos livros infantojuvenis que tratem desse período da nossa história, e acredito que isso diga muito da forma como a nossa sociedade encarou e encara esse triste período. A maior parte dos infantojuvenis que conheço nessa temática em português são traduções de livros da Argentina ou do Chile. 

Há bastante desconhecimento em relação à ditadura militar. No Rio de Janeiro, por exemplo, diversas escolas públicas recebem o nome de presidentes que torturaram e mataram pessoas. É um grande absurdo que isso ocorra, ainda mais porque a escola é o local onde aprendemos — ou pelo menos deveríamos — os valores democráticos. Era uma vez um quintal é também uma forma de fazer essa história chegar a outras pessoas. Além disso, a minha trajetória é muito atravessada pela ditadura. Nasci em Moscou, na antiga URSS, e morei quase dez anos em Moçambique como filha de exilados políticos. Seria difícil escrever sobre esse período sem partir das minhas experiências pessoais.

Quem lhe contou sobre o seu avô paterno, João Massena Melo, e seu ativismo político durante a ditadura?
O desaparecimento é muito perverso. É uma dor difícil de ser superada e as famílias que passaram e passam por esse tipo de violência praticada pelo Estado brasileiro reagem de diferentes formas. Algumas silenciaram diante da dor e outras se engajaram em grupos e coletivos de denúncia. No caso da minha família, essa história foi bastante silenciada e eu fui descobrindo aos poucos. Algumas informações foram contadas pelos meus pais quando eu era adolescente. Quando ingressei no curso de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), busquei mais informações nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Estive no sindicato dos metalúrgicos, do qual o meu avô Massena foi presidente, conversei com pessoas que conviveram com ele e fui descobrindo aspectos da sua personalidade.

Em 2024, o golpe completará 60 anos. Como você enxerga os ecos desse período? 
Os ecos da ditadura militar vão além dos familiares que reivindicam justiça, verdade e memória. A violência policial, ainda tão presente no nosso cotidiano, a influência dos militares na vida política, a ausência de respostas em relação ao que de fato aconteceu com os nossos entes queridos são representativos da forma como encaramos a ditadura militar no Brasil. Espero que os 60 anos do golpe sejam um marco na mudança de postura do Estado brasileiro: que as pessoas que cometeram crimes em seu nome sejam punidas, que os arquivos da ditadura sejam abertos e possamos saber o que ocorreu e onde estão os restos mortais dos nossos familiares e de outros desaparecidos políticos.

Temos tão poucos livros infantojuvenis que tratem da ditadura, e isso diz muito da forma como a nossa sociedade encarou e encara esse triste período

Como foi contar sobre a ditadura militar para crianças e jovens? 
Todos os meus livros se inserem em uma perspectiva de letramento político. Em Lila em Moçambique, trato sobre a experiência do exílio, na intenção de compartilhar os desafios e as aprendizagens dessa experiência e também mostrar um pouco do país que nos acolheu. Em Minha valente avó (Quase Oito, 2020), trouxemos a história da minha avó Maria Prestes, tão invisibilizada em função do machismo. Era uma vez um quintal é mais uma oportunidade de dialogar com crianças e adultos sobre esse período da história, além de trazer uma perspectiva de esperança ao apontar os novos encontros que continuam acontecendo no quintal e que são necessários para a nossa vivência — e sobrevivência. 

Como foi trabalhar com a Paula Delecave? De onde surgiu a ideia de unir fotografias e ilustrações?
A grande mídia geralmente retrata os desaparecidos políticos de maneira estereotipada e em fotografias 3×4, que é uma forma mais fria. Nesse sentido, a ideia da Paula Delecave de trabalhar com a foto-ilustração foi muito interessante, porque possibilita desconstruir estereótipos e mostrar que os desaparecidos políticos eram pessoas inseridas em contextos familiares, com esposas, filhos. Isso humaniza a história e as trajetórias de vida, cria afeto e possibilidades de identificação com aquela família.  


Ilustração de Paula Delecave [Divulgação]

Que livro você gostaria de ter lido na infância?
Eu gostaria de ter lido A redação (Record), do Antonio Skármeta. Ele mostra o ambiente de tensão vivido por adultos e crianças no Chile e as estratégias sórdidas dos militares para conseguirem informações das crianças. 

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Na minha opinião, a leitura e o acesso ao livro precisam ser incorporados no cotidiano das famílias com a inclusão de passeios a bibliotecas e livrarias, leituras compartilhadas entre pais e filhos; e com os adultos lendo, para dar o exemplo às crianças em casa.

Memória-colagem

Sempre fiz colagens. Por onde vou, guardo papéis, embalagens, tecidos. Além disso, sou uma espécie de guardiã das fotos de família. Por vezes, as colagens são mínimas, e outras são enormes, como na exposição Favelité (Ano do Brasil na França, 2005, em Paris). O processo de ilustração que adotamos para o livro Era uma vez um quintal foi partir das fotografias de família da Andreia e depois reconstruir esse imaginário do quintal, da casa e dos personagens.


 Ilustração de Paula Delecave

Fiz uma pesquisa sobre a história da família. Li muitas coisas, inclusive o livro de memórias escrito pelo pai da Andreia, João Massena Melo Filho. Em seguida, fui juntando vários outros materiais. No processo, fiz desenhos e depois os adicionei às colagens digitais.

Paula Delecave

É atriz, designer e ilustradora carioca e atualmente mora em Lisboa, Portugal. Ilustrou Que bicho eu sou? Que som eu faço? (Editora Lacre, 2023), de Guto Nobre, e Quando João ficou sem palavras (Memória Visual, 2017), de Ana Helena Rotta Soares. Em parceria com António Jorge Gonçalves, criou os espetáculos Frutoscópio (2018) e O convidador de pirilampos (2019), este último a partir do livro de mesmo nome do escritor angolano Ondjaki.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e estagiária editorial na Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.