Literatura infantojuvenil,

As impressões do menino Saramago

Memórias de infância do escritor português ganham novo ar com ilustrações de dois artistas, uma espanhola e outro mexicano

25fev2022 | Edição #54

“O mito do paraíso perdido é o da infância — não há outro.” — José Saramago

Um menino caminha com seu tio para vender porquinhos em uma feira em Santarém e observa as noites, a lua, as coisas e o assombro. Outro menino pesca na margem do rio Tejo, rodeado de pessoas que aproveitam o rio, as árvores, as garças, o silêncio e a ilusão. Essas histórias primeiro ganharam forma nas páginas de As pequenas memórias, livro em que Saramago narrou suas lembranças da infância desde a vila de Azinhaga até sua formação em Lisboa. Neste ano em que será celebrado o centenário de nascimento do autor, em novembro, a Companhia das Letrinhas está lançando dois livros ilustrados que resgatam esses dois episódios da infância do vencedor do Nobel de Literatura.
 

   
Armando Fonseca (foto de Amanda Mijangos) e Yolanda Mosquera [Acervo pessoal]

Uma luz inesperada, publicado como crônica na imprensa portuguesa entre 1969 e 1972, chega em forma de livro com as ilustrações do artista mexicano Armando Fonseca. O silêncio da água ganha reedição com ilustrações da artista espanhola Yolanda Mosquera. Os textos, que não foram originalmente escritos para o público infantil, trazem reflexões sobre a visão de mundo das crianças e ganham novo ar e encanto com as ilustrações dos artistas, inéditas no Brasil. Em entrevista à Quatro Cinco Um, os ilustradores falam sobre suas relações com a obra do escritor português, o diálogo entre imagens e palavras, o assombro, a criatividade e outros trabalhos que os marcaram. 

    
Livros de José Saramago

Qual foi o seu primeiro contato com a obra de Saramago?
Armando Fonseca:
 Foi quando comecei a ler. Pegava os livros da biblioteca do meu pai, que ficava em uma espécie de caverna onde ele trabalhava. Gostava de olhar os títulos sem saber nada sobre esses livros e levar alguns para o meu quarto e lê-los. Um desses livros era Ensaio sobre a lucidez, que não entendi muito bem na época, pois sua atmosfera é a de um mundo borrado.

Yolanda Mosquera Fernandez: Foi há muito tempo, eu era bem mais jovem, com Ensaio sobre a cegueira, livro que recuperei recentemente para reler com outra perspectiva. Para fazer as ilustrações de O silêncio da água, li As pequenas memórias como forma de ser contagiada com o espírito infantil e a delicada visão de mundo da perspectiva da criança que foi Saramago.


Ilustração de Armando Fonseca para Uma luz inesperada [Divulgação]
 

Como foi o processo de ilustrar esse livro? 
AF: A experiência de ilustrar Uma luz inesperada tem muito de jornada e de mapa. A própria história de Saramago narra uma viagem, de ida e volta para o espanto. Em cada livro que ilustramos precisamos ser capazes de fazer uma leitura que não fique apenas no prazer das peripécias e na anedota, que na medida do possível possamos ler, com atenção de detetive, os procedimentos que estão em jogo no livro. Ilustradores são um pouco como tradutores, que mergulham na obra de um autor. Meu editor extraordinário me fez reparar nos silêncios do texto, no caráter de peregrinação e esperança da história, na relação dos personagens com a natureza, o contexto, outras chaves para entender mais sobre Saramago e Azinhaga, assim como chaves para ler o que eu mesmo estava fazendo.

YMF: Para mim foi complicado, porque já existe uma edição ilustrada anterior, então, tentei mudar o olhar e trazer outro ponto de vista à narrativa visual e assim criar uma leitura paralela ao texto que tenha entidade própria e ao mesmo tempo que o respeita.

Como você cria suas ilustrações? 
AF: Saramago nos conta de uma viagem de infância, diária para ele. Durante sua jornada, acontece algo ao mesmo tempo extraordinário e comum: ele se encontra com o assombro. O assombro é o que pulsa no fundo do texto, mesmo fazendo-o silenciar, porque o assombro é assim: nos deixa sem palavras e nos desaloja. Foi a partir dessa palavra, não dita no texto, que resolvi trabalhar. O que é o assombro? Como contar o assombro com imagens? Também foi um livro no qual mergulhei completamente: a paisagem, a natureza, os personagens, a imaginação, os animais, as vilas ou cidades. E muito notavelmente: a luz. Está no próprio título do livro, uma luz inesperada: isso é o assombro? 

YMF: Decido criar as ilustrações a partir de um palco: as margens do rio Tejo e usá-lo para expressar ou sugerir a emoção ou sentimento de cada momento. O entorno será protagonista e a história é contada a partir daí. O ritmo da leitura visual tenta imitar a água que desce um rio suavemente, você entra na imagem e se deixa levar. É muito linear. As ilustrações compõem uma sequência contínua, como uma viagem, que guia o espectador rio abaixo, na direção da leitura, sempre à direita.


Ilustração de Yolanda Mosquera Fernandez para O silêncio da água [Divulgação]
 

As cores de O silêncio da água vão do verde a tons terrosos. Apesar do rio Tejo ser o principal pano de fundo, não há azul — o rio aparece em branco. Por que?
YMF: A narração se desenvolve de um entardecer até o sol se pôr. Um rio não é realmente azul, identificamos o azul com a água através dos códigos visuais que nos foram ensinados desde pequenos. Um rio profundo pode ser muito escuro. Me coloquei todos esses problemas em relação às cores e à realidade e decidi trabalhar com uma paleta de cores muito reduzida para poder capturar o espectador da ficção, do que não existe. A decisão final de que o rio era branco (o tom do papel) foi focar o protagonismo em suas margens e assim reforçar a poesia do título do livro O silêncio da água. Não vemos o rio, mas ele existe, é definido pelos limites de suas margens.

Há também desenhos quase que escondidos, ou que aparecem por formas vazadas. Como é essa brincadeira com os contornos?
YMF: Este jogo surge da técnica utilizada; o estêncil, no qual, com um molde de papel, você coloca a cor no furo do recorte. Com apenas três cores, sobrepostas umas às outras, você cria uma mistura de formas sinuosas que me interessava para emular de certa forma o jogo de luz e sombra de entardecer.


Ilustração de Armando Fonseca para Uma luz inesperada [Divulgação]
 

Nas ilustrações de Uma luz inesperada parece haver uma mistura de técnicas. Como é a composição de técnica, cores e materiais em seu trabalho?

AF: Uso todas as técnicas, aquarela, tinta, óleo, pastel, carvão etc. Mas para este livro usei muito uma técnica pela qual me apaixonei: monotipia a óleo. Que consiste em fazer o selo de um desenho, em uma placa, para carimbar no papel. É como uma espécie de gravura precária. Essa técnica foi boa para esse livro porque a monotipia é a impressão de um desenho, é a impressão de um gesto. E esse livro fala sobre a memória do assombro. E isso é a memória: uma impressão que permanece, mas que não é idêntica ao original, como na monotipia. 

Dos livros infantis que já ilustrou, algum te marcou de uma forma particular? Qual e por quê? 
YMF: Sim, é uma pequena edição feita aqui na minha terra, o País Basco, com um texto de Patxi Zubizarreta que narra ficcionalmente um acontecimento real e bruto de como foi o exílio das crianças na Guerra Civil Espanhola de 1937. Em 21 de maio, um navio chamado Habana partiu de Bilbao com 3.861 crianças e duzentos professores para a Inglaterra. Muitas crianças nunca voltaram. Para fazer as ilustrações busquei toda a documentação visual que pude e, ao ver as fotos dessas crianças, seus rostos, seus olhares, pensei na dor da separação tanto para os filhos quanto para os pais… enfim, pensei sobre a tragédia humana de uma guerra e que alguém, neste segundo, está sofrendo.


Ilustração de Yolanda Mosquera Fernandez para O silêncio da água [Divulgação]
 

Qual livro marcou sua infância?
AF: Um livro muito importante para mim foi Sandokán, de Emilio Salgari. Li quando tinha sete ou oito anos e minha realidade se transformou a partir dessa leitura. O mundo se tornou uma história de piratas e aventuras, cheias de perigo e coragem, nos canais de Xochimilco, um lugar ao sul da Cidade do México onde morava um dos meus melhores amigos. Imediatamente meus amigos viraram personagens do livro, e a garota por quem eu estava apaixonado se tornou a Pérola de Labuan; ela dizia que era uma bruxa e que podia fazer chover à vontade. Por muito tempo vivi nessa fantasia. Tentei fazer com que uma das imagens de Uma luz inesperada refletisse aqueles dias de piratas, já que Saramago relata no livro que também gostava muito de histórias de piratas, e que em seu caminho a Santarém eles atravessaram a terra em um navio imaginário. Essa imagem se tornou a capa do livro.

YMF: Na minha infância eu não tive muitos livros. Venho de uma família humilde e trabalhadora dos anos 70. Provavelmente, os poucos livros que tinha foram herdados de minha irmã cinco anos mais velha. Um dos livros que me lembro de ter revisto mil e uma vezes é uma edição de 1977 de La oca loca, de Gloria Fuertes, com ilustrações de Miguel Fernández-Pacheco.

Como incentivar o hábito de leitura nas crianças?
AF: A pergunta parte do princípio de que todos nós temos que gostar de ler livros igualmente. Penso na leitura em um âmbito mais amplo do que o dos livros, a leitura da casa, a leitura das relações com os outros e com a natureza, a leitura do mundo. A leitura começa com o assombro original. Conheci muitas crianças que não estavam interessadas em ler este ou aquele livro, mas podiam se assombrar com a viagem que um pequeno inseto fazia em uma planta, e fazer perguntas interessantíssimas. E isso também é ler. O livro é uma continuação do mundo, e o mundo continua no livro. Acho que deveríamos fomentar a liberdade nas crianças. Saramago inventou um provérbio que dizia: "Deixa-te levar pela criança que foste". 

YMF: Acho que o mais importante é ensinar com o exemplo. Se uma criança vive em um ambiente onde os livros são comuns e vê que os adultos os usam, é provável que mais cedo ou mais tarde seja contagiada. Se isso não for possível, dar a oportunidade de estar em contato com eles ou ter acesso fácil também é importante. Acho que livros ilustrados e quadrinhos são boas portas de entrada para esse mundo. Também temos que pensar naqueles que tem dificuldade de leitura. É outra maneira de criar vínculos com um livro e com a cultura.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Beatriz Muylaert

Jornalista e editora executiva da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.