Fichamento,

Paulo Scott

Escritor gaúcho lança, com o quadrinista Rafael Sica, graphic novel distópica sobre violência, medo, solidão urbana e sabedoria

01mar2021 | Edição #43

Em Meu mundo versus Marta (Quadrinhos na Cia.), Paulo Scott, autor de Marrom e amarelo, cria uma história sem diálogos e com muitas camadas interpretativas. 

Como foi o processo de criação com Rafael Sica? 
Escrevi uma história, um argumento em sete laudas e, no início de 2012, ofereci ao Rafael. Ele aceitou e, a partir de então, não houve qualquer intervenção da minha parte. Conversávamos, mas eu não interferia. São duas obras distintas, acabadas, que repercutem o encontro e a amizade de seus criadores.

Em 2011 você lançou com Laerte O monstro e o minotauro. Foi sua primeira obra em quadrinhos? O que mudou em seu jeito de criar nessa linguagem? 
De trabalho impresso, sim, foi O monstro e o minotauro. Foi, a propósito, uma sorte enorme ter sido convidado para trabalhar com a minha amiga Laerte. Mas eu já havia escrito o Não me mande flores, que foi desenhado por Eduardo Medeiros, autor do Sopa de salsicha, a pedido do escritor Joca Terron, que na época coordenava um projeto de graphic novels. Infelizmente a editora desistiu do projeto. Hoje, tenho melhor noção dos limites da linguagem praticável em torno de um roteiro para história em quadrinhos. Mas não significa que eu tenha desenvolvido um modo de fazer. Minha literatura já é bem imagética, lida bastante com cenas, arcos narrativos muito baseados no agir. Acho que minha escrita ficou mais enxuta e menos hermética.

Em Meu mundo versus Marta há várias referências bem específicas: filmes, bares, personagens. Como e por que essas referências foram surgindo?
Isso é parte da história que o Rafael contou. Achei magnífica a opção de estabelecer Pelotas (RS) como cenário — é uma cidade que aprendi a respeitar e admirar. O fato de não ter diálogos acentua a possibilidade de variadas leituras, interpretações; os signos e as referências saltam mais aos olhos.

Há algo como um narrador em primeira pessoa? 
Eu vejo, tanto no argumento escrito quanto nos desenhos de Rafael, a prevalência de um olhar narrativo na terceira pessoa. Há uma provocação do tipo: veja, testemunhe o que poderia acontecer se entre nós surgisse um ser desconhecido com poder de destruição absoluto, um Marte, uma Marta, uma arma não compreendida, que precisasse ser contida por um Atena, que fosse fruto de uma sabedoria e, ao mesmo tempo, um veículo que propiciasse um ensinar e um aprender. Há um enlaçamento vital entre os dois protagonistas — arma e fragilidade na mesma balança. 

O livro aborda violência, armas, solidão urbana, miséria. Você já disse discordar do rótulo “literatura engajada” para suas obras. Por quê?
No argumento está tudo isso, mas de uma maneira que afeta a relação íntima de dois seres. Por se tratar de um fabular distópico, é possível jogar essa carga tremenda sobre a relação de dois seres a respeito dos quais muito pouco é explicado para evidenciar a complexidade dos códigos de manutenção de uma ordem, a qual se mantém sob a expansão do sentimento de medo. Quanto ao rótulo de literatura engajada, sim, faço questão de me manter longe da armadilha que ele carrega. Um adjetivo pode ser um cartão de visita que abrirá algumas portas, mas é algo que pode reduzir uma obra, um projeto, uma visão. Meu objetivo é contar boas histórias. Não quero a posição confortável e, dependendo da situação, covarde de me encontrar sob o guarda-chuva do bom-mocismo criativo dos que se pretendem formuladores de obras-instrumento de luta e crítica social direcionadas. Cabe às leitoras e aos leitores descobrir o sentido do que imaginei e externei. Penso que o trabalho e a postura do Rafael Sica vêm ao encontro desse entendimento.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.