Fichamento,

Morgana Kretzmann

Escritora e roteirista gaúcha lança thriller ecológico protagonizado por mulheres fortes de comunidades na fronteira Brasil-Argentina

01mar2024

Com facão, balas e sangue nos olhos, protagonistas de Água turva (Companhia das Letras) lutam contra construção de hidrelétrica no extremo-sul do país.


Água turva, de Morgana Kretzmann

Como surgiu esse thriller ecológico? 
Eu queria fazer um livro policial que tivesse mulheres fortes como protagonistas. Sou muito fã da Ana Paula Maia, ela foi uma inspiração forte. Também queria algo na fronteira do Brasil com a Argentina, no noroeste do Rio Grande do Sul, de onde eu sou. Criei uma cidade fictícia ao lado do Parque Estadual do Turvo, que conheço desde criança, e outra do lado argentino. Vou algumas vezes por ano para essa região, meus pais moram lá, e fiquei sabendo do projeto de uma hidrelétrica. Se for construída, uma parte do parque ficará debaixo d’água e a chance de o Salto do Yucumã desaparecer é grande. Dei uma aumentada em tudo e trouxe a hidrelétrica, com outro nome (para não ser processada), como motor da narrativa. 

Sua formação em gestão ambiental influenciou a escolha do tema? 
Fiz esse curso na faculdade, mas nunca exerci a profissão. Queria estudar para não falar tanta bobagem. Às vezes, a gente romantiza demais as questões ambientais e esquece o lado social, as pequenas comunidades, indígenas, ribeirinhos que vivem da caça e estão ao lado das unidades de conservação. Tentei colocar isso no livro. 

E usou dados reais do projeto da hidrelétrica?
Não é um livro-reportagem, mas inseri alguns dados, para chamar a atenção. Como é uma região distante, pouco olhada pelos políticos, eles acham que podem fazer o que quiserem. E a gente, o que pode fazer? Escrever um livro. 

Essas questões são mais dramáticas em regiões de difícil acesso, nas fronteiras?
Cheguei a pensar: estou escrevendo um faroeste que se passa no Brasil. Algumas pessoas acham o termo “Brasil profundo” questionável, mas eu não. O Itamar [Vieira Junior] disse em uma entrevista que fala de um Brasil profundo sim, um Brasil em profundidade. Eu sempre falei que sou desse lugar, que não é onde tudo termina, e sim de onde vêm as grandes histórias, o nosso alimento, as pessoas. Tudo que faço, desde a época do teatro, é graças a esse lugar, a matéria-prima para eu continuar fazendo minha arte da maneira mais digna que posso.

A cidade e a comunidade do seu romance lembram a Macondo de Cem anos de solidão. Pensou em García Márquez ao escrever? 
Incrível você falar isso porque, no ano passado, quando estive no parque, em três momentos se formou uma panapaná [nuvem de borboletas] ao meu redor e pensei: é o García Márquez me dando um oi. Quem sou eu para tentar fazer algo parecido com o Gabo… Mas acho que tem esse flerte com o realismo mágico dele. Já voltei muitas vezes ao Cem anos de solidão, como retornei a Enquanto agonizo, do Faulkner. São livros em que vejo muito essas famílias do interior, onde eu nasci. 

O romance tem mulheres fortes, mas também uma figura masculina que está por trás de tudo. Está falando mais do matriarcado ou do patriarcado? 
Do matriarcado, sem dúvida. Tentei criar personagens mulheres fazendo o que estamos acostumados a ver como “coisa de homem”. Mas não queria fazer isso de maneira panfletária, queria que fosse algo corriqueiro, como se o matriarcado fosse o novo normal.

Mas não quis romantizar a sororidade.
Não posso ter só homens como antagonistas, os fodões que comandam tudo. Eu quero uma mulher tão poderosa a ponto de ser má. Para mim o livro fala do amor e da amizade entre as mulheres. No momento em que elas se veem como aliadas, nasce essa amizade.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)