Fichamento,

Lourenço Mutarelli

O escritor, desenhista, ator e professor paulistano lança uma autobiografia hipnótica baseada em sonhos inventados

25ago2022 | Edição #61

Quase um pedido de desculpas, segundo o autor, O livro dos mortos (Companhia das Letras), escrito em noites de insônia e finalizado após um infarto, traz um Lourenço Mutarelli vulnerável em busca de delicadeza.

Há sobreviventes n’O livro dos mortos?
Há reencarnantes, esses que voltam da morte. Eu mesmo nem voltei. Acho que não há sobreviventes.

No livro estão os prontuários médicos do seu infarto. Isso foi um dos motivos para a autobiografia?
O livro já estava pronto, estava deixando descansar um pouco para reler e mandar a versão final para a editora. Eu estava me sentindo bem, até demais, e tive um infarto, o terceiro. Era o auge da pandemia, ainda não tinha vacina, e eu sem plano de saúde. Uma dor com intensidade entre nove e dez, aquilo de que falo no livro. Fiquei muito tempo morto, mas foi bom. Um prazer parecido com a experiência que tive com a ayahuasca, uma dissolução, fazer parte de um todo. Teve um momento poético, mas depois veio uma depressão muito grande. Do hospital, escrevi para minha editora pedindo que incluíssem meu atestado [de óbito] se eu morresse; era o melhor fim que o livro poderia ter.

Mudou muito o texto depois de voltar do hospital?
Só a última parte. Voltei também a algumas partes, mas não mexi demais na estrutura. Eu não gosto muito de trabalhar texto, detesto escrever o que já sei, escrever memórias, fazer relato, saber o final. Nesse livro, foi muito doloroso revisitar algumas memórias.

Por que então escrever uma autobiografia?
Primeiro por causa dessa minha insônia horrível. Também tem uma coisa meio Sherazade, que é contar mais uma história e, assim, talvez, viver mais um tempo, o do livro. Sei lá. Eu estava vivendo um momento difícil. Meu trabalho é meu tratamento.

Desenhar também é terapêutico?
Desde que comecei a escrever o livro, não desenhei. Na pandemia, fiz algo que só fazia na juventude: um diário. Não um diário existencial, eu dizia ser sub-existencial.

Tem coisas desse diário no livro?
Tem muito do livro no diário. Uso muito escrita automática, eu penso dessa forma. Geralmente durmo alcoolizado, meu sono profundo dura uma hora, no máximo, tenho a noite toda para dançar comigo, e é bem desagradável para onde eu vou. O livro é isso, algo meio bêbado, de alguém que não dorme e está vivendo no limite. Tive a coragem de falar para meu psiquiatra que não tenho certeza se eu voltei, se estou vivo mesmo. Eu rompi com a realidade na época do primeiro surto da minha mulher. No livro, quando a mulher se justifica [de coisas que falou] porque estava em surto, o narrador responde: “Mas eu não estava”. De alguma forma procurei um surto para assimilar tudo aquilo.

Conseguiu assimilar depois de escrever?
Como disse, o livro foi terapêutico, e terapia não é uma coisa fácil. Mas adoro esses capítulos mais oníricos. Sonhos são uma linguagem pura, muitas coisas escapam até para mim. O livro é quase um pedido de desculpas, uma entrega: “Olha como sou vulnerável”. O que mais venho buscando é delicadeza.

Há momentos de delicadeza no livro…
Sim, há de tudo. Tem coisas pesadas, personagens detestáveis, machistas, mas tem essa delicadeza também. Queria que as pessoas entendessem que dá para carregar esse peso todo e me manter delicado. Mas sei lá, acho que eu era muito mais bruto, lutava muito mais contra tudo isso porque fui educado assim e me exigiam isso. E chega um momento em que você para de se importar. Posso assumir que sou delicado, mas sou forte também, porque levo porrada pra caramba.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.