
Fichamento,
Eliana Alves Cruz
Novo romance da escritora, roteirista e jornalista carioca traça a saga contemporânea das trabalhadoras domésticas no Brasil
01maio2022 | Edição #57Solitária (Companhia das Letras), de Eliana Alves Cruz, é narrado por duas mulheres negras, mãe e filha, e pelo quartinho no apartamento de luxo onde têm de morar.
Depois de lançar romances históricos, por que resolveu escrever um romance inspirado na realidade contemporânea?
Em Água de barrela, a saga romantizada de minha família a partir do século 19, há uma personagem, a minha tia-bisavó, a quem dedico Solitária. Ainda pré-adolescente, ela foi mandada para a casa de uma família branca em Salvador e ali ficou até morrer. Ninguém conseguia resgatá-la; havia uma amarra psicológica que vinha do tempo da escravidão, e ela achava que tinha uma dívida de gratidão para com aquela família. A menina do interior mandada novinha para trabalhar em casas de família continua sendo a história de um montão de gente. Quando veio a pandemia e vieram à tona casos de pessoas trabalhando em regime análogo à escravidão em casas de família ou as tragédias que aconteceram com empregadas domésticas que precisam levar seus filhos ao trabalho, vi que era o momento de escrever essa história.
É também outra forma que encontrou para trabalhar com a literatura negra?
É cada vez mais importante estar nessa trincheira; reconhecer-se como escritora ou escritor negro é uma afirmação política. Precisamos nos afirmar como escritoras da literatura negra porque o Brasil é esse lugar onde a pessoa é ameaçada de morte por causa de uma história que escreveu. Meu livro é para mulheres negras nesse sistema ainda muito calcado na escravidão, mas também para a população branca que não foi escravizada, mas tem algum bom senso. E não vejo muitas protagonistas como as de Solitária. A gente teve [o filme] Que horas ela volta?, da Anna Muylaert, que é muito maravilhoso, mas não tem o recorte racial, e é completamente diferente uma profissional negra dentro de uma casa branca. O que esperam de mim? Que eu escreva um romance de época, a história de meus antepassados? Mas não, vou falar desse passado de um jeito diferente, como ele está acontecendo aqui e agora, desfilando na nossa frente.
Sim, além da realidade das trabalhadoras domésticas, o livro trata de outros temas atuais, como acesso à educação, aborto…
Toquei em coisas delicadas. Fiquei pensando “Falo? Não falo?”. Pronto, falei. Precisamos discutir por que uma adolescente de classe média é uma adolescente, mas uma menina da periferia filha da empregada da casa é uma mulher. Essa reflexão sobre a infância negada está presente em quase todos os meus livros. No livro O crime do cais do Valongo falo de pessoas que vieram para o Brasil, os pretos novos, que eram crianças, tinham entre nove e dezessete anos, segundo os estudos.
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A ideia de nomear os capítulos como cômodos da casa surgiu durante o processo de escrita, criando mais um significado para o título Solitária?
A gente precisa falar dessa arquitetura, desses espaços diminutos pensados para a exclusão. Não só o quarto de empregada, que agora mudaram o nome para quarto reversível, mas a casa do porteiro, que geralmente fica na garagem. Tenho um conhecido com problema de pulmão porque é filho de porteiro, vivia respirando gás carbônico dos carros. Como você bota um ser humano dentro de um cano de descarga? Ou deixa o quarto da empregada do lado das lixeiras, das vassouras?
O título veio do sentimento de solidão, de não pertencimento dessas pessoas, que não moram no prédio nem na casa delas. Também quis fazer essa conexão com a prisão, onde a solitária é um lugar para a pessoa ser completamente apartada da sociedade, porque, sim, a gente vive num apartheid.
Matéria publicada na edição impressa #57 em maio de 2022.
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