Fichamento,

Aldri Anunciação

Autor do premiado ‘Namíbia, não!’ narra a distopia subjetiva de um suposto branco que, do dia para a noite, vira negro

01nov2023 | Edição #75

Escritor e roteirista baiano mostra como é ficar na pele do outro em seu novo romance Pretamorphosis: biografia não autorizada de um ex-branco (Malê).

Você escreve para teatro, cinema, TV. Quando decidiu que Pretamorphosis seria um livro? 
Durante o processo [de escrever] vou entendendo se é roteiro de cinema, peça de teatro, literatura. Neste livro, quando vi os comentários do Aldri autor ganhando espaço na narrativa, comentando a trama, pedindo clemência pelo personagem, como um narrador machadiano, decidi: isso é literatura. Minha premissa era fazer algo pseudo-kafkiano, porque o livro começa [Franz] Kafka e termina [Frantz] Fanon.

Tive essa ideia há dez anos, mas deixei de molho. Em 2020, quando o George Floyd fica oito minutos e 46 segundos repetindo “não consigo respirar”, vi que era hora de tirar o livro da gaveta. Quis criar um dispositivo ficcional que estimulasse a empatia do leitor não negro. Por mais antirracista que seja a pessoa, essa aproximação tem um limite, né? É difícil estar na pele do outro.


Pretamorphosis: biografia não autorizada de um ex-branco é o novo romance do escritor baiano Aldri Anunciação, autor de Namíbia, não!, que inspirou o filme Medida provisória

É o que você tenta fazer com Gregório, o protagonista?
A brincadeira é: será que consigo fazer o leitor não negro se identificar com aquela figura branca? Vai se afastar quando virar negra ou se identificar com sua negritude fantástica? Se você é branco, está convocado para o jogo.

Foi para esse leitor que você escreveu? 
Tem uma camada de recepção para a branquitude e uma para a negritude. Quis escrever um livro para o leitor branco pensar o que faria se um dia se tornasse preto, descobrir se é difícil mesmo ou é mimimi. Para o leitor negro, o livro fala do embraquecimento de sua identidade e a questão de tornar-se preto, já sendo. 

Você passou por esse processo de se descobrir negro?
No meu caso, a minha família passou por uma ascensão social na década de 80, mudamos de bairro. Com sete anos, eu estava andando de bicicleta nesse bairro de classe média, como eu andava na periferia [de Salvador] e um senhor barbudo, que parecia o Papai Noel, falou: “Meu filho, saia da rua, o carro pode te atropelar porque eles querem matar os pretos”. Ali descobri que era preto.

Como o Aldri roteirista de cinema e TV entra no livro?
Pretamorphosis é uma história muito simples que tento articular de forma divertida, com a dinâmica do streaming. É muito imagética, com muita ação e terminei no ápice, convidando o leitor para a “próxima temporada”, como em uma série.

Mas você também cita autores e conceitos que faz questão de explicar no final. Teve essa preocupação?
Trazer esses elementos quase didáticos tem a ver com letramento racial. O protagonista é um branco adulto e seu quarto é de adolescente. Acho que há uma adolescência na branquitude, enquanto o negro se torna adulto muito cedo, em vários aspectos: na sabedoria, nas formas de sobrevivência. Amigos brancos me perguntam o que fazer para ser antirracista e respondo com a ficção, como fiz na peça Namíbia, não! que inspirou o filme Medida provisória. Tem sempre um quê de ensinamento. Viro professor, e meu desafio é como fazer isso sem ser chato. Em Pretamorphosis, achei pertinente explicar quem foram as figuras que me referenciaram.

Além de citar essas figuras, você também se refere a sua própria obra, como o filme Medida provisória
Percebo que tenho um tema único, estou sempre narrando a desidratação da identidade. Dou pistas que o autor está conectado com esse universo que chamam de distópico — o preto é uma distopia subjetiva — e falar em Medida provisória, que é uma distopia, é um pequeno sinal: olha, gente, estamos falando do mesmo tema, mas com outras histórias, outros quiprocós. 

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.