Ciências Sociais,

O mestre da rua

O historiador, convidado d’A Feira do Livro, fala sobre carnaval, Exu e a necessidade de se ocupar a cidade

07jun2023 | Edição #71

“Tá me ouvindo bem? Não, é que eu tô no bar.” Assim começa o papo com Luiz Antonio Simas, historiador, professor, connoisseur de samba e perito nas miudezas da rua, onde leciona há mais de uma década em bandas tão diversas quanto cemitérios, puteiros, terreiros e escolas de samba. Convidado da segunda edição d’A Feira do Livro, autor de livros como Samba de enredo: história e arte (2010, Civilização Brasileira, em parceria com Alberto Mussa) e O corpo encantado das ruas (Civilização Brasileira, 2019), ele fala — tomando uma limonada suíça, deixa claro, pois está trabalhando — sobre a imprevisibilidade dos espaços públicos, a mercantilização do carnaval e o preconceito em torno das religiões de matriz africana. Compartilha, também, dicas de samba em São Paulo e dos últimos bons livros que leu.
 
Você dá aula nas ruas há muitos anos. Qual é a diferença fundamental entre esses ambientes e a sala de aula tradicional? Qual a importância de permear esses lugares?
Por incrível que pareça vejo mais semelhança do que diferença. As pessoas confundem muito escolaridade com educação. A escolaridade é só um aspecto da educação. Mas a educação acontece aqui no bar, na esquina, na praça, na igreja, no terreiro, no campo de futebol, em uma roda de samba, em um show de rock. O fenômeno educativo está acontecendo no cotidiano. A rua te coloca em uma posição de esperar o tempo todo o inesperado. A sala de aula também tem muito disso, evidentemente. Nela você também se surpreende. Mas a rua é o inusitado. Quando você entra em uma sala de aula, sabe a matéria que tem que trabalhar, sabe onde começa e onde tem que terminar. É claro que nesse percurso ocorrem surpresas, mas você está ali cumprindo um programa. A rua é um mistério. Na rua você chega achando que vai falar uma coisa e acaba falando outra completamente diferente. Na rua você chega com uma expectativa de fala e descobre que a sua expectativa tem que ser de escuta. Eu dou aula na rua há onze anos e já vi tudo o que você possa imaginar. Acredito firmemente que a rua é uma escola. E quando falo que dei aula em puteiro, é sério! Já dei aula na Vila Mimosa, a zona aqui do Rio, às oito horas da manhã. Já dei aula em cemitério, em terreiro de macumba, em botequim, em praça, em esquina… porque eu sou um professor.

A Feira do Livro, da qual você é convidado, tem esse caráter de evento de rua, aberto, gratuito. Tem essa qualidade de incentivar a livre circulação, de sair do condomínio, do shopping, do espaço fechado. Como esse tipo de evento impacta a vida da cidade?
A cidade é um espaço em disputa. Ela serve para corpos apressados, domesticados, disciplinados dentro de uma lógica do trabalho, que circulam para gerar capital. Ela é um espaço de conflito — nunca foi um espaço de consenso. E cada vez mais é pensada para que a gente não se encontre na rua. Então acho que esse tipo de evento é fundamental porque precisamos chamar atenção para a prática da rua, de estar na rua. Vou a muitos festivais literários e a maioria é dentro de salão, de espaço fechado, de pavilhão, em auditório com ar-condicionado, com aquelas cadeiras estofadas.

A Feira acontece na praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, um lugar bem simbólico para a cidade, no esporte e também na política. O que você acha de trazer a literatura para esse espaço?
Acho ótimo, muito relevante. Espaços públicos têm que ser praticados como espaços de exercício de democracia e de cidadania. Temos uma visão de cidadania que ainda é muito formal. A cidadania se expressa no direito de praticar a cidade. O Pacaembu é um patrimônio público. Então, quando você faz uma feira literária na praça, em um lugar com tanto simbolismo e tão disputado — porque o futebol brasileiro também é disputado, entre o futebol que se pretende popular e o de modernas arenas que trabalham em uma perspectiva de elitização do público —, isso é muito simbólico. Outra coisa: qualquer lugar é lugar para falar de livro. O livro tem que estar na praça, no botequim, no terreiro, na igreja. O livro tem que estar em tudo quanto é lugar.

A sua literatura é muito permeada pela rua, né?
Grosso modo, escrevo livros de história e crônicas do cotidiano. Não sou um ficcionista. Escrevo sobre miudezas, sobre os desacontecimentos do cotidiano. Não escrevo sobre grandiosidade. Vou olhar o moleque jogando bola de gude na praça, o garçom conversando. Eu escuto a rua o tempo todo. E não tenho uma relação de sacralização com o livro, não. Gosto do livro que você empresta, que sublinha com caneta, que dá de presente. Quando a relação se estabelece na sacralidade, talvez ela seja mais de respeito do que de amor. Eu escrevo livros sobre as vagabundagens do cotidiano, e acho que a nossa relação com o livro tem que ser assim: atravessada por rua, por botequim, por papo. Gosto da relação material com o livro e as feiras literárias dão essa possibilidade.

Você lança em breve Crônicas exusíacas e estilhaços pelintras, pela editora Record. Pode falar um pouco sobre o livro?
É o seguinte: é um livro um pouco esquisito. Tanto que começo dizendo que prefiro que você não o leia em casa. Quero que bote na bolsa e leia no metrô, no perrengue do trem, no bar, quando você marcou um encontro e a pessoa atrasou, quando você está em um lugar com medo de que apareça um chato que resolva conversar contigo, quando está no consultório do dentista esperando aquela porcaria para fazer um tratamento de canal. É talvez o meu livro mais mundano. Fala de personagens que estão rigorosamente à margem do que a gente imagina que sejam personagens de uma história oficial. Nele eu parto do princípio de que Exu é a boca que tudo come. E Exu não está presente na rua, Exu é a rua. É a materialidade da rua. O livro começa com histórias curtas, que levam o tempo de uma estação de trem para ler. E não tem nada inventado. Como sempre, não é ficção. É uma mistura de crônica com a história.

Quem são algumas dessas figuras marginalizadas?
A primeira história é sobre Djalma de Lalu, que era um pai de santo da baixada fluminense. Uma vez por ano ele recebia de Exu, via sonho, um palpite para o jogo do bicho. Isso é verdade — ou pelo menos dizem que é, e não sou eu que vou discutir. E aí Seu Djalma de Lalu apostava e ganhava. Teve um ano em que ele foi jogar em todas as bancas da baixada, de Nilópolis a Nova Iguaçu. E uma procissão começou a acompanhá-lo, porque todo mundo ia jogar na milhar dele. E a milhar saiu. Ele ganhou uma fortuna e construiu uma fila de casas populares chamada São Lalu — Lalu é o nome do Exu — com o dinheiro do jogo do bicho.

Outro personagem é o Jaiminho Alça de Caixão. Ele foi a mais de 1300 enterros no Rio de Janeiro, virou um especialista em carregar caixão. Se tinha enterro, ele estava lá. Se morria alguém famoso, ele aparecia. Não perdia enterro. Virou personagem popularíssimo. O primeiro enterro dele foi o de Getúlio Vargas. Depois ele arrumou um emprego na prefeitura de Nilópolis: "Assessor para assuntos especiais" — que, no caso, era ir a enterro. A vida dele era isso. Quando morreu a irmã Dulce, a Santa Dulce dos Pobres, na Bahia, a cidade se mobilizou para fazer uma vaquinha para o Jaiminho ir representando os carregadores de caixão. Chegava ao ponto de entrevistarem ele com a maior seriedade: "Senhor Jaiminho Alça de Caixão". O único enterro a que ele foi mas não carregou caixão foi o do Rei Momo, no Rio Bola, que pesava trezentos quilos. Aí ele simulou queda de pressão.

Que personagens maravilhosos.
Tem também o Seu Lourival de Freitas, um médium muito famoso aqui no Rio, que incorporava Nero, o Imperador Romano, e fazia curas. Ele atendia no subúrbio, em Cavalcante, e era conhecido como Nero de Cavalcante. Ele chegou a atender Tom Jobim, tomaram uísque juntos. O Tom Jobim dizia: “Tomei uísque com o imperador”. Em uma entrevista genial que achei, em um jornal popular aqui do Rio, o Luta Democrática, perguntam se ele tinha tacado fogo em Roma. Aí Seu Nero vira e diz: “Que nada, malandro, você acha que eu sou maluco?”. Então é isso: esse submundo de pequenos vigaristas, golpistas, fantasmas, espíritos. É o imaginário popular que parte do princípio de que a história de uma cidade também é contada pela história de seus vigaristas e de seus fantasmas.

Voltando um pouco para a figura de Exu, possivelmente a mais polêmica das divindades: por que Exu é alvo de tanto preconceito?
Há um preconceito entranhado no Brasil contra qualquer coisa que não seja atravessada por uma cultura europeia ou norte-americana, branca. É um preconceito que se manifesta no ódio, no racismo, mas também na simpatia pitoresca. A simpatia pitoresca é também um perigo. Ela dialoga o tempo todo com o preconceito. É a questão da desqualificação simbólica das culturas não brancas. O Frantz Fanon alertava para uma coisa que é óbvia: o racismo não se manifesta só na impressão da cor da pele, mas também no campo do simbólico, com a desqualificação dos saberes não brancos.

Além disso, Exu é um orixá controverso. Ele não é exatamente um orixá do bem nem do mal. Ele é um mensageiro, um encruzilhado. Ele é o que sacraliza o profano. O que ri quando você acha que ele deveria estar chorando, o que chora quando você acha que ele deveria estar rindo. Ele é o zombeteiro. E ele coloca para a gente a impossibilidade de se conectar com qualquer verdade definitiva. Basta lembrar de um dos seus mitos mais famosos, o da carapuça com duas cores: quem está de um lado da praça acha que a carapuça de Exu é vermelha e quem está do outro acha que é preta — e são as duas coisas ao mesmo tempo. Contam que uma vez deram uma cabaça para Exu com o pó da verdade e outra com o pó da mentira e pediram para ele escolher. Ele quebrou as duas e misturou numa terceira: "A minha cabaça é essa". Exu é o orixá do desconforto. "Exu te ama" é uma frase, por exemplo, da qual eu discordo veementemente. Não ama nada! Não ama de jeito nenhum. O amor é uma construção de uma imagética cristã, o amor de cristo, aquela coisa toda. Exu não te ama, ele te quer alegre. É outra coisa. Exu transita pelo espaço simbólico da alegria, não pelo espaço simbólico do amor. E isso desconforta.

Sob esse prisma da simpatia pitoresca, o que você acha de terreiros virarem “moda” em alguns bairros mais elitizados, mais brancos?
Também não vou ser eu quem vai ficar fazendo juízo de valor, o cara vai para onde quiser e o dono do negócio também faz o que bem entender para pagar as contas, não sou eu que vou dar uma de purista. Mas acho que, de certa maneira, é vazio. Existe uma diferença entre vivência e simulacro, e eu acho que esses lugares têm muito de simulacro.

O carnaval, sobretudo o das escolas de samba, sempre teve um foco grande na cultura africana. No ano passado, inclusive, a Grande Rio venceu com um enredo sobre Exu. Estamos falando de um espetáculo que atinge uma parcela enorme do país. Acha que isso tem um impacto para educar ou amenizar o preconceito do brasileiro com as religiões de matriz africana?
Deveria ter mais. As escolas de samba perderam certa capilaridade que já tiveram nas décadas de 60, 70, quando estavam no auge. Em alguma medida por culpa delas mesmas. Elas se afastaram de suas comunidades, começaram a transitar muito mais no campo do entretenimento turístico do que no da cultura. Foram tragadas com uma certa lógica do espetáculo e entraram em crise. Mas, por incrível que pareça, acho que essa crise é a salvação delas. Hoje a situação é muito melhor do que era quinze anos atrás porque as escolas de samba elas deixaram de interessar a um público mais geral, viraram uma coisa de bolha. Tem muito mais gente que quer brincar o carnaval de rua do que o de escola de samba. E faz sentido. A garotada mais nova vai botar uma fantasia que pesa vinte quilos e ficar ensaiando com um diretor de harmonia enchendo o saco se, porra, pode se fantasiar de, sei lá, cotonete e ir para a rua?

Mas, diante dessa crise, percebo um movimento de reconexão das escolas com suas comunidades, o que é importante. Há uma leva de enredos que pensam um Brasil africano, o que acho super legítimo, até porque as escolas de samba são criações das comunidades de descendentes de africanos escravizados, tanto no Rio como em São Paulo. Elas têm função pedagógica, sim, mas acho que poderiam ter mais. Elas ainda precisam de uma reconexão maior fora da bolha. Agora, uma coisa é óbvia: é carnaval! Também não dá para pegar um enredo e trabalhá-lo sem carnavalizar. A carnavalização é importante.

O carnaval de rua vem crescendo, ganhando massa fora do circuito tradicional de Rio, Salvador e Olinda. Você acha esse movimento positivo?
Acho, mas esbarra no que falei sobre a disputa pela cidade. Esses grandes carnavais de rua estão sendo disciplinados por aquilo que há de pior e mais ameaçador ao carnaval: o mercado. Os grandes blocos estão sendo tragados por uma lógica mercantil. É patrocínio, é a marca de cerveja que você vai ter que beber, é o alvará que estabelece que você vai desfilar naquele lugar e naquela hora. E é aquela marca que resolve patrocinar o carnaval da cidade inteira, então o folião que resolve esculhambar aquela porra e xingar a marca e levar um cartaz vai tomar em tudo quanto é lugar. Vão impedir que ele faça isso.

Então esse crescimento do carnaval de rua é positivo, mas traz riscos. E um dos riscos que vejo como mais preocupante é a perda de certa espontaneidade, de um caráter exusíaco da rua, da espera do inesperado, por um carnaval cada vez mais ordenado — e não só por um discurso ligado a segurança e ordem pública, mas pelo mercado, e isso aí é brabo. É querer que qualquer evento gere circulação de capital — e é ótimo que gere. O carnaval é fundamentalmente a grande festa da economia criativa brasileira. Tem muita gente que trabalha com isso, que vive disso, e isso é uma beleza. Mas temos que ficar atentos para que a excessiva mercantilização não acabe justificando o carnaval de rua só pela lógica de circulação de capital.

Logo você estará em São Paulo para A Feira. Que lugares da cidade você gosta de frequentar?
E sou um cara que gosta mais de samba do que de música, e sempre gostei muito do samba de São Paulo. Eu sempre ia ao Ó do Borogodó, onde toca a turma dos Inimigos do Batente, um conjunto excepcional. Também fui a rodas de samba pesadas no Anhanguera, um clube de futebol de várzea da cidade. O samba de São Paulo é muito mais ligado a certa pegada do batuque de Pirapora do Bom Jesus, do samba de bumbo campineiro. Me impressiona muito como ainda temos poucos estudos sobre a cidade preta de São Paulo, porque tem a tradição do samba, a tradição das rodas de tiririca, que é a pernada paulista, a tradição da turma do Largo da Banana. Também conheci grandes botequins de São Paulo. Ali na Barra Funda há botequins de primeiríssima categoria. Estou devendo também ir a algum lugar em que toca um grande compositor paulista, muito ligado ao samba, o Douglas Germano, que faz umas coisas maravilhosas. Já fizemos música juntos.

Isso me lembra de uma composição sua para o Salgueiro, no carnaval de 2009, que perdeu nas eliminatórias e nunca chegou à Sapucaí, mas ganhou fama entre apreciadores de samba enredo.
O “Tambor”! É meu com Alberto Mussa e Edgar Filho. Os iniciados falam muito desse samba, ele marcou época. Perdeu a disputa porque disputa de samba é outra coisa. E porque era um samba meio suicida, né? Ele propunha umas ousadias, trabalhava com três refrões quando ninguém ainda fazia isso. Mas o "Tambor" é legal, eu tenho uma porção de música gravada com uma porção de gente, mas tem uma galera que conhece só o “Tambor” e eu adoro, acho bacana.

Para concluir, qual o último bom livro que você leu?
Deixa eu pensar em qual que vou falar para evitar riscos de melindrar a turma que fica me mandando livro. Terminei de ler recentemente Carnaval-Ritual [Cobogó], do Mauricio Barros de Castro, sobre o Carlos Vergara e o Cacique de Ramos. Achei formidável. Tem uma edição muito bem cuidada, gostei imensamente disso. E pensando em São Paulo, Pacaembu, Museu do Futebol… recentemente li um livro interessante do Marcelo Dunlop, O mau humor de chuteiras [Mórula], um verdadeiro tratado sobre a sociologia do futebol. Também li dois livros sobre escrever biografias, o do Ruy Castro e o do Lira Neto [A vida por escrito e A arte da biografia, ambos pela Companhia das Letras]. Eu me impressionei sobretudo porque eles discordam pra caramba. Sou amigo dos dois e achei aquilo ótimo. Mas eu sou um mau leitor, leio pouca ficção. Talvez o vício de historiador me faça ser assim.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.