Ciências Sociais,

Eu sempre será por nós

bell hooks partilha estratégias de autorrecuperação em livro que inaugurou sua produção sobre o amor

01set2023 | Edição #73

Li a mais recente tradução de bell hooks acompanhada. Abri Irmãs do inhame, publicado originalmente nos Estados Unidos em 1993, mas só agora traduzido por floresta e editado pela WMF Martins Fontes, menos de uma semana depois da passagem da ativista brasileira Solimar Carneiro para o Orum, o mundo espiritual iorubá. Já na nona página, das 265 do livro, no prefácio nomeado “Reflexões luminosas”, bell hooks cita a escritora e ativista norte-americana Toni Cade Bambara: “A revolução começa no eu e com o eu”.

A luz que acendeu em mim refletia as palavras que Lúcia Xavier publicara dias antes em seu perfil do Instagram: “Sabe, Soli, as muitas conversas, as várias viagens, os muitos aprendizados que vivi com você e que compartilhamos são para mim momentos vivos de nossas vidas que iremos contar e recontar para manter viva a sua memória e honrá-la como uma guerreira, irmã, amiga e inspiração… Olorum kossi pure, irmã. Eu sempre será por nós.”

Uma leitura para quem tem a coragem de mergulhar em si sem o egoísmo ingênuo e sim como ser coletivo

Se a revolução começa no eu e com o eu, eu sempre será por nós: bell hooks, Solimar, Sueli, Solange, Suelaine, Priscila, Luanda, Natalia, Eva Carneiro, Lúcia Xavier e tantas generosas mulheres negras que compartilham axé, nutrição e amparo, com quem li este livro.

No prefácio da edição brasileira, Ynaê Lopes dos Santos explicita:

Este é um livro de uma mulher negra, para mulheres negras, sobre mulheres negras. O que obviamente não impede que outros leitores e leitoras o leiam. Ao contrário […]. Pode ser tomado como um belo convite para se aproximar um pouco de questões íntimas que constituem as vidas das mulheres negras.

Ao tratar da subjetividade de mulheres negras, bell hooks nos apresenta possibilidades de existência pelas frestas da violência racista e sexista — frestas alargadas pela compreensão de que o sistema de opressão em que vivemos precisa ser enfrentado coletiva e politicamente. Mas o foco do livro não está nesse sistema, está em nossa irmandade. Mais precisamente na partilha de estratégias de autorrecuperação.


Irmãs do inhame é um livro sobre cura e inaugura a produção literária de bell hooks sobre o amor

Irmãs do inhame é um livro sobre cura. Ele inaugura a produção literária de bell hooks sobre o amor e é considerado pela autora como um livro de autoajuda, com potencial de alcançar muito mais pessoas — especialmente mulheres negras — que a maior parte de sua obra.

O livro trata de aspectos concretos da vida: como falamos com as crianças; o quanto dissimular a verdade como estratégia de convencimento e sobrevivência não causaria mais danos que benefícios; a energia que colocamos no trabalho e o retorno que recebemos; nossos cabelos e beleza; paixão além da heteronormatividade; a relação com a terra, os alimentos, as plantas; morte e perdas dolorosas; perdão e reconciliação como liberdade e não subjugação; espiritualidade que transcende religião e nada tem a ver com fundamentalismo religioso. Temas tão importantes, tantas vezes esquecidos por intelectuais e ativistas, sobre os quais bell hooks compartilha referências, vivências e reflexões densas. Um livro para todo mundo que tiver a coragem de mergulhar em si sem o egoísmo autocentrado e ingênuo que não permite nos localizarmos como seres coletivos, sociais e políticos. Explica bell hooks:

Também senti que o “inhame” era um símbolo de sustentação da vida para o parentesco e a comunidade negras. Em qualquer lugar onde as mulheres negras vivem, nós comemos inhame. O inhame é um símbolo de nossas conexões diaspóricas. O inhame nutre o corpo enquanto alimento e também é usado de forma medicinal — para a cura do corpo.

A cura do corpo possibilitada pelo alimento-inhame é a cura do espírito realizada na roda-inhame que hooks facilitou entre mulheres negras e em espaços de troca e reflexão que se multiplicam na diáspora e também no continente africano.


A ativista brasileira Solimar Carneiro [Reprodução]

Solimar Carneiro vivenciou, por pelo menos quarenta anos, essa partilha cotidiana e ativista entre mulheres negras. À beira do fogão, produziu alquimias de cura nas comidas de encontros e festas. No compasso do samba-rock, performou a liberdade que um dia alcançaremos todas. Em Geledés, foi estrutura, mensageira, proteção para a juventude. Solimar Carneiro fez por quem esteve perto dela e também para toda a população negra brasileira, que tem colhido frutos do seu ativismo. No velório de Solimar eu me perguntava o quanto, em seus 66 anos de vida, ela havia feito por ela.

Fazer menos

Um dos fundamentos deste livro de bell hooks é a urgência de mulheres negras fazermos menos. A defesa da autora é de que precisamos trabalhar menos horas, nos preocupar menos e também cuidar menos de toda e qualquer pessoa ao nosso redor. Estamos condicionadas à crença coletiva de que mulheres negras estão no mundo para servir e essa doação desequilibrada e sem reciprocidade nos adoece. Tantas vezes escapamos da opressão e da exploração, nas palavras de bell hooks, entorpecendo a dor com álcool, drogas, excesso de comida, compras e gastos exorbitantes e desnecessários. Vícios que nos aprisionam e aprofundam ainda mais a dor que carregamos nas cicatrizes constantemente reabertas.


A ativista norte-americana bell hooks [Karjean Levine/Getty Images]

Para bell hooks, a resposta está no amor por nós mesmas e no amor entre nós. É pelo amor que paramos de contracenar com — e, assim, alimentar — a violência patriarcal, capitalista, supremacista branca. O mundo de amor que desejamos precisa ser inventado em nossa irmandade hoje, não como ideia abstrata, mas como prática intencional e transformadora. Eu pergunto se Solimar Carneiro fez tanto por si quanto fez por todas nós, mas não tenho nenhuma dúvida de que sua vida na terra foi repleta de amor. Oxalá na nova vida receba ainda mais de todo o amor que ofereceu.

Nós, que seguimos aqui, devemos buscar caminhos de cura para nossas fraturas porque assim — nos ensina bell hooks — estaremos no caminho de emancipação, recuperação e regeneração de cada uma de nós, de todas as pessoas, de todo o planeta. 

Quem escreveu esse texto

Bianca Santana

Jornalista e escritora, é autora de Quando me descobri negra (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.