Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Os Bronzes têm dono

Potências europeias devem banir o fantasma de seu passado colonial e devolver os artefactos, especialmente objectos espirituais, roubados de África, Ásia e América

24out2021 | Edição #51

Sobre a arte roubada e a complicada relação entre museus ocidentais e as pessoas afetadas pelo colonialismo, os roteiristas Ryan Coogler e Joe Robert Cole, com sua versão do personagem Killmonger (ainda que com os habituais tiques de Hollywood), usando como veículo o fenómeno de popularidade que foi o filme Pantera Negra, ganharam os corações de todos os afrodescendentes ao fixarem na cultura pop o debate que vem sendo travado desde os finais da década de 1950 sobre a devolução a África de todos os artefactos dela levados ao longo da história.

Discursando diante de uma plateia de estudantes na Universidade de Uagadugu, no Burkina Faso, em 2017, o presidente francês Emmanuel Macron demarcou-se do tom paternalista dos seus predecessores no Palácio do Eliseu com a frase: “Sou de uma geração que não vem para dizer aos africanos o que fazer”, e mais, arrancou aplausos entusiásticos da plateia quando afirmou não poder aceitar “que uma grande parte do património cultural de vários países africanos esteja em França”, sublinhando que este não podia continuar “prisioneiro dos museus europeus”. Macron praticamente cuspiu no túmulo de Jules Ferry -— o positivista que acreditava na hierarquia racial e civilizacional -— quando foi um pouco mais longe: “O património africano deve estar visível em Paris, mas também em Dakar, em Lagos e em Cotonou”, e imbuído do mais profundo otimismo, mostrou-se também crente de que em cinco anos se alcançariam as condições necessárias para o retorno temporário ou permanente do património cultural a África.

Ver para crer

Contudo, enquanto o presidente espalhava o seu charme diplomático em África, na sua terra natal, nos salões gauleses mais nobres e antigos, vários pares de sobrancelhas grisalhas mais drapeadas que os cortinados de Versalhes entreolharam-se de espanto, com a esperança de que aquele fosse só discurso para boi dormir, uma tentativa de aliviar as tensões políticas entre França e as suas ex-colónias e massajar o ego dos africanos mais intransigentes que não veem a hora de mostrar o dedo do meio à velha senhora, virando-se de vez para China, porventura menos hipócrita, nunca escondendo ao que vinha, deixando claro para os líderes do continente-mãe que o dinheiro não tem cor, credo ou género.

Quando Bénédicte Savoy — historiadora de arte, investigadora do Collège de France, especialista no tema da espoliação de obras de arte — e o renascentista Felwine Sarr — professor da Universidade Gaston Berger, no Senegal, e autor do livro essencial Afrotopia (publicado no Brasil pela n-1 Edições com a tradução de Sebastião Nascimento) — depositaram nas mãos do presidente francês, imediatamente após o discurso em Uagadugu, o controverso relatório sobre o património de origem africana nas coleções públicas francesas, intitulado “Restituir o património africano: para uma nova ética relacional”, poderíamos ter motivo para se lançarem foguetes, mas nós, os africanos, acostumados a políticos que nos mentem descaradamente, adotamos a postura de São Tomé, ver para crer.

O relatório fez correr muita tinta nos jornais franceses e transbordou para a imprensa das antigas potências coloniais (que têm nas paredes, expositores e armários dos seus museus de arte roubada) que temem que outros povos sigam o exemplo africano e venham também reclamar o que lhes pertence. O Parlamento francês, respondendo às recomendações do relatório Sarr-Savoy e ao apelo do presidente, aprovou uma lei no ano passado que permitirá a devolução de 27 objectos da era colonial ao Benim e ao Senegal no prazo de doze meses. O projecto de lei diz respeito a artefactos reais pilhados em 1892 pelas tropas francesas do palácio de Abomey, no Benim actual, que se encontram no Musée du Quai Branly-Jacques Chirac, em Paris, e à espada de um comandante militar da África Ocidental, actualmente emprestada ao Museu das Civilizações Negras em Dakar pelo Museu do Exército francês. Resta saber o que será feito às cerca de 90 mil peças desse património de origem africana que se encontram nas coleções públicas francesas.

Passado infame

No dia 22 de setembro do corrente ano, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie proferiu um discurso provocador, na abertura do Fórum Humboldt em Berlim, que reverberou nos meios de comunicação um pouco por todo mundo. Diante de uma plateia pejada de figuras de peso do Estado alemão, como o presidente Frank-Walter Steinmeier, ou Monika Grütters, a Comissária do Governo Federal para a Cultura e os Meios de Comunicação Social, entre outros convidados ilustres em representação das mais prestigiadas instituições culturais do mundo, a autora e ativista não esteve com rodeios, intimando as potências europeias a banirem o fantasma do seu infame passado colonial e devolver os artefactos, especialmente objectos espirituais, roubados de África, Ásia e América Latina ainda em sua posse. Aplausos e elogios não lhe foram poupados, tanto na audiência presente em Berlim como nas redes sociais, que rapidamente classificaram a intervenção como sendo um dos seus melhores discursos até à data.

Adichie elogiou a promessa feita pelo governo alemão de devolver os Bronzes do Benim que se encontram em sua posse até 2022, objectos saqueados do palácio real do Benim por soldados ingleses durante o ataque que pôs fim ao reinado do Oba Ovonramwen Nogbaisi, em 1897. Hoje, encontram-se espalhados pelo mundo, em museus e coleções privadas, sendo que grande parte desse espólio se encontra em posse dos britânicos. A autora nigeriana, na sensatez que lhe é característica e diante de vários pares de sobrancelhas grisalhas na plateia, afirmou: “Obviamente que não penso que tudo deva ser enviado de volta para os países de onde eles vieram. Nem tudo foi roubado, mas sim as coisas que são sagradas. Aquelas coisas pelas quais as pessoas foram mortas. Aquelas coisas que têm a mancha de sangue inocente devem ser devolvidas”.

O discurso da autora de Meio sol amarelo levou-me de volta ao filme Pantera Negra. Na cena, o personagem interpretado pelo ator Michael B. Jordan examina artefactos do continente africano numa das salas do fictício Museu Britânico, antes de ser abordado por uma mulher, a diretora do museu, a quem ele lança uma série de perguntas sobre a origem das peças expostas, entre as quais um Bronze do Benim do século 16, a que a diretora responde, sem esconder a sua empáfia e condescendência, provir do povo Edo do Benim. A senhora acaba por irritar-se, quando Killmonger a corrige sobre a origem de um outro artefacto que ela julgava provir também do Benim e da tribo Fula:

— Foi levado por soldados britânicos do Benim, mas é de Wakanda. E é feito de Vibranium, mas não se preocupe, eu vou tirá-lo das suas mãos.
— Os objectos não estão à venda.
— Como é que pensas que os receberam? Achas que eles pagaram um preço justo? Ou levaram-nos como levaram todo o resto?

Naquele momento, o vilão Kilmonger é elevado a herói e as ações moralmente condenáveis que executa carregam uma motivação que nós, africanos, reconhecemos e aplaudimos. Numa espécie de reparação histórica de crimes perpetrados contra vidas inocentes, a linha ténue que separa a sede de justiça do desejo de vingança não é assim tão linear.

Coisas pelas quais pessoas foram mortas, que têm a mancha de sangue inocente, devem ser devolvidas

O certo é que quando se fizer o rescaldo de dois ou três séculos de independências africanas, as gerações que aí vêm não terão como bitola do conhecimento os iluministas europeus. As referências serão Achille Mbembe, dra. Kathryn Gines, Felwine Sarr, Mpho Tshivhase, homens e mulheres do futuro, que sabem que instituições como Museu do Vaticano, Museu Britânico, Museu Real da África Central da Bélgica, Weltmuseum/Museu do Mundo de Viena e Fórum Humboldt precisaram atualizar-se e não bastaram boas intenções e discursos bonitos. Como a sra. Adichie disse em Berlim, “todos os países têm partes da sua história das quais não se orgulham. Uma nação que acredita no estado de direito não pode estar a debater se deve ou não devolver bens roubados. Limita-se a devolvê-los”.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.