Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Novinho em folha

Em janeiro, quer se queira, quer não, seremos obrigados a esbanjar optimismo, e até nossos inimigos obrigar-nos-ão a pontuar cada interação com um ‘bom ano’

01jan2021 | Edição #41 jan.2021

Na edição nº 6 da Granta em língua portuguesa — In memoriam, a cantora, compositora e escritora angolana Aline Frazão estreou um conto maravilhoso sobre a solidão, a fragilidade da memória, e mais sobre o que se conhece e se desconhece de quem nos é íntimo. Pessoas, ideias, lugares — as várias Áfricas, maiúsculas e minúsculas, graves, agudas e esdrúxulas; como os Brasis, tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão familiares. Na voz de Soraia, uma das suas personagens, a frase “no fundo a gente brinca de se conhecer muito bem mas é mentira, não nos conhecemos” me trouxe novamente uma resolução antiga: o desejo de me autopromover a ex-estranho no maior número de Brasis que conseguir somar dentro de 365 dias. 

Chegamos ao mês de janeiro de todas as resoluções. Diante de nós, um ano novinho em folha para pôr em prática todas as promessas feitas até às 23:59 e 47 segundos do dia 31 de dezembro do ano transato. Em cima de uma cadeira, com uma taça de champanhe erguida, cronometrando segundos, o engolir de doze passas de uva até o derradeiro momento em que se saltará para o chão com o pé direito, dando assim, segundo os hábitos festivos da época, as boas-vindas a 2021.

E que o salto tenha sido estrepitoso. Com estrondo, com tudo a que se tem direito. Rebentar de foguetes, bater de tampas de panelas e gritos, muitos gritos — histéricos, estridentes e esganiçados. Para esquecer as desgraças dos doze meses anteriores. Que não nos sobre voz e que, já dia, afónicos mas felizes, estejamos a chupar limão ou um rebuçado para a tosse com os olhos postos no novo amanhã. Que se tenha gasto tudo, sacudido o pó do ano passado acumulado nos móveis, nos objetos guardados longe da vista. Que não se tenha desperdiçado rigorosamente nada, nem gargalhadas nem lágrimas, nem a oportunidade de saudar a nostalgia, pintando o céu com fogo de artifício ou, menos recomendável, com balas de metralhadora. Segundo o manual dos rituais de véspera de ano-novo, fazer barulho é um ato purificador, afasta as más energias. Como precisamos.

Comecemos então o ano praticando o perdão. Perdoar todos aqueles e aquelas que nos tenham ofendido, não com impropérios e demais calúnias, mas sim às almas que, sem uma única pinga de pudor, desde a consoada natalícia, nos têm vindo atormentar com os seus votos de felicidade e prosperidade em infindos grupos de WhatsApp, obrigando-nos a embarcar num processo de reavaliação das nossas amizades ou, pior, a termos de responder na mesma moeda, com frases feitas vazias de significado de tão gastas que estão. Em janeiro, quer se queira, quer não, seremos obrigados a esbanjar optimismo. Os vizinhos, os colegas de trabalho, os caixas de supermercado, os polícias de trânsito e até os nossos inimigos obrigar-nos-ão a embarcar no ritual de pontuar cada interação interpessoal com um panglossiano “bom ano” até o primeiro dia de fevereiro.

Salvador e São Paulo

No preâmbulo que idealizei realizar, Salvador é a primeira paragem, por razões óbvias, começando pela localização geográfica. Riscando uma linha recta paralela à do Equador, desde a minha Benguela umbilical, vamos dar justamente na Bahia. Dos anos todos em que visitei o Brasil, sempre evitei visitar o mais africano dos estados brasileiros, pois, quando chegar, quero me esquecer da data de saída, por tudo o que os Doces Bárbaros cantaram, pelo violão de Dorival Caymmi, pela Tenda dos milagres de Jorge Amado. Mas há também lugares menos óbvios, como o Quilombo do Cafundó, nos subúrbios de Salto de Pirapora, interior de São Paulo, onde se podem encontrar ainda, com sorte, falantes de cupópia, uma língua secreta, em vias de extinção, que combina a estrutura morfossintática do dialeto caipira com cerca de 160 palavras bantu, cuja maioria tem origem no kimbundu.

O personagem Sebastião Fakayamale, do conto da Aline, tem um desabafo sobre um dos equívocos mais graves na relação entre os povos de origem africana, com uma passagem em que diz: “esses brazukas são muito atrevidos, chegam aqui pensam que conhecem a língua dos imbondeiros e as picadas dos marimbondos, pensam que sabem o que é chuva-não-veio, feitiço, komba, ngoma, falam tipo se pertencem daqui, mas nem já perguntar como é então, nós, filhos da barriga vermelha da terra”. Este pejo, fruto da dicotomia casa-grande/senzala, que serviu tão bem o projecto colonial e que cinicamente persiste, sustenta, entre outros ismos, preconceitos com base em colorismo, tribalismo e a disputa ridícula entre africanos do continente vs. africanos da diáspora.

Para 2021 ser um ano memorável bastará não repetir as desgraças do vinte-vinte

Como se o ngoma, que em muitas línguas bantu significa tambor, não fosse o único elemento da cultura africana que dispensa qualquer tipo de tradução. No Brasil é chamado de angomba, ngamba ou ingomba e, além de acompanhar algumas danças, está presente em cerimónias folclóricas afro-brasileiras coco e bambelô. O ngoma, esse instrumento de percussão que o historiador e etnomusicólogo Rafael Galante aponta como sendo um possível ancestral de alguns modelos de tambores do Sudeste brasileiro, nomeadamente os caxambus e candombes do jongo do Vale do Paraíba, é também utilizado nas cerimónias do candomblé bantu, inicialmente praticado por pessoas escravizadas que falavam kimbundu, umbundu e kikongo. Trocado por miúdos — gente mwangolé.

Da minha lista de resoluções para o novo ano consta ainda continuar a insistir com Aline para que nos brinde com mais histórias. Vozes literárias como a dela, hoje em Angola e no mundo que se expressa em português, são extremamente necessárias. Insistir à distância porque, até voltar a ser seguro, vou limitar-me a trocar mensagens telefónicas até o dia em que nos voltemos a cruzar, porventura nos bastidores de um qualquer teatro no mundo, depois de um dos seus concertos, em que a sua música, que é sempre uma janela virada para o Atlântico, me convida a segui-la de volta a Luanda e testemunhar de perto como se reconstroem as utopias que somam e se multiplicam como sumaúmas.

Quem sabe nosso próximo encontro será em Lisboa, no bairro da Lapa, naquela sala de jantar que deságua na cozinha onde nos encontrámos pela primeira vez. Um lugar comunitário, quase público, de encontro e conversa  animada, que tem a singela particularidade de ser uma divisão da casa do escritor José Eduardo Agualusa. Digo singela, porque no tempo AC (antes da Covid-19) aquela cozinha nos pertencia: não foram poucas as vezes que cogitámos que, se fosse possível chegar até ela sem termos que atravessar a casa, ou seja, se tivéssemos outro acesso que não pela porta principal, estou certo de que juntaríamos uma frente revolucionária dos frequentadores mais assíduos e proclamaríamos independência. Faríamos daquele pequeno oásis, na freguesia onde se concentram grande parte das embaixadas de países estrangeiros em Portugal, o primeiro e informal “Centro Cultural e Gastronómico Filhos e Amigos de Angola” na cidade das sete colinas.

Para 2021 ser um ano memorável bastará não repetir as desgraças de vinte-vinte. Que surtam efeito todos os banhos de mar nos braços de Kalunga, todas as cuecas azuis que foram estreadas na passagem do ano. Que o branco eleito como indumentária oficial da noite de réveillon tenha apaziguado os espíritos do mal. Que o amor, esse bem de primeira necessidade, seja abençoado pela sorte das peças vermelhas vestidas no último dia de 2020. E mais, espero que as peças de roupa amarelas iluminem todos os cientistas da alemã BioNTech, da americana Moderna, assim como todos os outros que têm nas mãos a missão de salvar a humanidade. E para não fugir à regra — Feliz Ano Novo!

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.