Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

As indecifráveis intenções de um líder

A voz da Massa Crítica era, segundo os que a conheciam desse antigamente distante, a mais cativante de todas elas, a verdadeira voz do povo

01abr2021 | Edição #44

Cansado de ouvir o consenso dos vassalos e dos bajuladores de costume, por se sentir incompreendido pelo povo, o Soba decidiu chamar a Massa Crítica para uma audiência privada. A corte tremeu. Desde que tomara posse, o Soba nunca quis ouvir ninguém que não estivesse em linha com os seus pontos de vista. Não que tivesse muitos, mas aqueles que ousaram pôr o dedo em riste anunciando que tinham opinião contrária desapareceram sem deixar rasto. Dizem as más-línguas que viraram isca para jacaré ou ração para abutres. Daí o espanto dos seus conselheiros.  

Incansáveis como sempre, os homens mais leais da sua guarda chamaram para si a missão, deixando os bajuladores roendo as unhas. A presença da Massa Crítica era uma ameaça aos seus postos de trabalho. Será que o Soba estaria cansado de ser engraxado por estes, perguntavam-se uns aos outros, temendo que os seus dias estivessem contados. Naquela mesma manhã, a sua fiel guarda, conhecida pelo epíteto “os kabiri raivosos”, saíra do palácio em número nunca antes visto. Rosnando e rangendo os dentes. Palmilharam o sobado de ponta a ponta, e nada da tal Massa Crítica. Começaram por vasculhar a sua casa. Como estava vazia, arrombaram as portas das cubatas dos familiares mais próximos e dos amigos que conviviam com a Massa Crítica, e nada. Varreram de seguida os locais que habitualmente frequentava e no mercado disseram que há muito que ela não aparecia. Alguns diziam que se mudara para o sobado vizinho; outros, os mais maliciosos, diziam que morrera, talvez vítima de paludismo. 

Frustrados, mas com medo de decepcionar o Soba, os kabiris continuaram com as buscas. Junto ao riacho, encontraram uma das suas vizinhas entre um grupo de lavadeiras, ameaçaram-na com os castigos mais terríveis se não lhes dissesse onde a Massa Crítica se escondera. A pobre senhora ainda lhes fez frente, mas as colegas suplicaram que ponderasse as consequências. Todas elas poderiam sofrer ataques físicos. A ira de homens frustados é sobejamente conhecida, e aquele sobado não era diferente de todos os outros territórios onde os conflitos de ideias acabam em guerra, e guerra só é guerra quando travada no corpo feminino. E lá a vizinha confessou que, depois das últimas cheias que lhe arrastaram o barraco, a Massa Crítica se mudara com a família para o beco sem saída. Quando os kabiri lá chegaram lhes foi confirmado, a Massa Crítica andou por lá nos primeiros meses do cacimbo. A última vez que a viram, zanzava sem eira nem beira, a declamar as suas opiniões contraditórias para uma parede vazia. A família pensou em mandá-la para o quimbandeiro, mas antes que a intervenção familiar se efectivasse, a Massa Crítica  fugira.

A Razão foi atirada para uma fogueira e as suas cinzas foram lançadas para o mar

Alargaram-se as buscas aos outros sobados. Por onde os agentes kabiri passavam, diziam que perderam a tal da Massa Crítica por um ou dois dias e, quando chegaram ao último sobado do reino, lhes foi dito que viram a Massa Crítica atravessar a fronteira para a outra margem do rio Zaire, outros ainda insistiram que ouviram rumores dizendo que a avistaram por terras do Sul a atravessar o rio Cunene. Todos tinham uma opinião sobre seu paradeiro, mas, da Massa Crítica, nem fantasma. Os agentes colocados no seu encalço começaram a desconfiar se ela alguma vez havia existido de facto, se não seria tudo fruto da imaginação do Soba, mas questionar o líder estava fora de questão; todos temiam o castigo por tal ousadia. Resultado: continuaram-se as buscas. 

Nos meses que se seguiram, ninguém mais voltou a dormir sossegado. Nas ruas, não se ouviu outro assunto, por onde anda a Massa Crítica? De repente, de sussurro em sussurro, de assobio em assobio, um mujimbo cabeludo começara a ganhar espaço na mente dos cidadãos, um mujimbo sem fundamento algum, mas, tal como todo mujimbo, poucas são as pessoas que se interessam com a veracidade dos factos quando a mentira é infinitamente mais lúdica. E assim foi, alguém apontou o dedo à viúva da Massa Crítica, a senhora Razão, e vozes unânimes se ergueram em concordância, tinham que ser a viúva, pensou o coro, tinham de ser ela, que ao invés de chorar o desaparecimento do companheiro, arrotava superioridade vindo a público apelar ao tal de bom senso, pensou a turba. 

E do pensamento à acção não precisaram de muito, bastou o uivo unânime para que uma multidão enraivecida de catana em punho invadisse as ruas disposta a fazer justiça pelas próprias mãos. E fez: invadiram a cubata da Razão, pilharam tudo o que encontraram de útil e valioso e prenderam-na. O sobado tremeu, os anciões, temendo o pior, ainda apelaram ao Soba, mas este não lhes deu ouvidos. A Razão foi atirada para uma fogueira e as suas cinzas foram lançadas para o mar.

Depois do linchamento da Razão, não demorou até a sociedade dividir-se. Passaram todos a desconfiar da própria sombra. Até que surgiu a notícia de que a Massa Crítica aparecera morta. O cadáver estava num avançado estado de decomposição. Ainda que ninguém tivesse conseguido confirmar-lhe a identidade, todos suspiraram de alívio. Fez-se o óbito, a missa de sétimo dia e quando todos julgaram que se havia virado a página, surgiu o rumor de que a Massa Crítica ressuscitara e fora vista em local longínquo. O Soba, feliz com a boa nova, pediu que os seus kabiri lhe trouxessem o foragido, mas quando os guardas lá chegaram, deram com os burros na água, novamente.

E foi aí que o Soba ouviu os seus conselheiros. Ofereceram-se recompensas: dinheiro e cabeças de gado para quem apresentasse uma pista concreta. Passaram-se anos. Quando finalmente deram por ela, estava perdida no meio do mato, nem a reconheceram, os anos naquele exílio tinham sido penosos. Quem lhe era íntimo reconheceu; a voz que lhe era característica murchara, mas guardava ainda o fogo e a eloquência dos tempos em que ainda lhes era permitido pensar em voz alta nos quatro cantos do reino. A voz da Massa Crítica era, segundo os que a conheciam desse antigamente distante, a mais cativante de todas elas, a verdadeira voz do povo, diziam.

Muda e neutra

— Estava a ver que já não gostavas de mim — disse-lhe o Soba assim que a avistara entrar na sala. A Massa Crítica sorriu, dirigindo-se para a cadeira que o soberano lhe indicara.

— O nosso quimbo precisa de ti.

A Massa Crítica permaneceu muda, a língua lhe pesava. O Soba, que estava acostumado a falar sozinho, nem reparou, ou se reparou fez vista grossa, fingiu que não viu. Ofereceu-lhe kissangua, e continuou a divagar sobre uma infinidade de assuntos, dissertando sobre a sua governação, educação, saúde pública, a desvalorização da moeda… A Massa Crítica ora encolhia os ombros, ora abanava a cabeça de forma ambígua, era difícil dizer se em discordância ou a favor do que ouvia. Parecia outra, nem mesmo um suíço neoliberal conseguiria ser tão neutro. Não criticou nada.

O Soba, ofendido com tanta neutralidade, chamou os kabiri de guarda.

—Levem essa inútil daqui. E ensinem-lhe como ser uma Massa Crítica que critica de verdade — ordenou.

Durante os meses que se seguiram, a Massa Crítica foi instruída sobre as questões do sobado, assimilou tudo que era preciso para intervir sobre questões domésticas e além-fronteiras em concordância com a doutrina vigente. E aprendeu. Hoje, há quem diga que, sem a Massa Crítica para traduzir ao restante povo da aldeia as ideias do Soba, ninguém jamais chegaria a entender quais são afinal as verdadeiras intenções do líder.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.