Kalaf Epalanga
Um benguelense em Berlin
Anthony e Alice
O princípio da presunção da inocência do direito romano é muito bonito, mas para os pobres e para os que carregam a tez escura o veredito é apenas um: culpado, até que se prove o contrário
01jan2022 | Edição #53Todos nós, negros, somos parecidos. Essa expressão é tão antiga quanto o Iluminismo, quando a invenção de conceitos raciais se combinou com teorias do desenvolvimento humano em estudos de figuras como Johann Friedrich Blumenbach, a quem se credita a criação de uma das primeiras classificações baseadas na raça nos idos de 1776. O antropólogo alemão fixou cinco categorias: “Caucasiano, a raça branca; mongol, a raça amarela; malaio, a raça castanha; etíope, a raça negra; e americano, a raça vermelha”. Embora se apresentasse como abolicionista, suas teorias foram usadas para defender e implementar projetos supremacistas de conquista, usurpação e consequente desumanização de todos os que não pertencessem ao tipo caucasiano e eurocêntrico.
Para o grupo étnico ao qual pertenço, ouvir esse adágio baforento para justificar a dificuldade que pessoas de outros grupos têm para diferenciar indivíduos de outras etnias é mais do que ofensivo e preconceituoso. Esse comportamento preguiçoso e estereotipado que cientistas sociais caucasianos identificaram como efeitos de outra raça pode resultar em condenações criminais indevidas, erros de identificação nos documentos de identidade, fotos trocadas na imprensa e uma panóplia de constrangimentos, generalizações e gafes que nós — os do tipo etíope, de acordo com o professor Blumenbach — tão bem conhecemos.
Nem as personalidades mais proeminentes da comunidade afrodescendente estão imunes. Samuel L. Jackson, cansado desse tipo de gafe, perguntou a um repórter que o entrevistava se este não sabia distingui-lo do ator Laurence Fishburne. Envergonhado, o jornalista desculpou-se repetidamente, a ponto de esbofetear-se de tão envergonhado que estava. Quando questionado sobre o incidente, Fishburne mostrou-se feliz com a forma como L. Jackson lidou com o jornalista e relembrou que isso não é exclusivo do tipo etíope. Pessoas fizeram a mesma coisa com Dustin Hoffman e Al Pacino porque eles não se pareciam com os típicos galãs do cinema que vieram antes. Eu próprio conheço várias histórias, todas com pendor cômico, de leitores de Mia Couto abordarem o escritor José Eduardo Agualusa pedindo que este lhes autografasse os livros do autor moçambicano.
Devemos acreditar na mulher branca que diz que foi estuprada ou na negra que sai em defesa do filho?
Essas situações — quando ocorridas na imprensa, nos estabelecimentos de ensino, nos locais de trabalho ou de convívio social — são no mínimo indigestas, mas não as podemos comparar com as tragédias que podem ocorrer quando os efeitos de outra raça se intrometem em assuntos de polícia, em que a articulação da presunção de inocência fixada pelo Digesto Direito Romano, Ei Incumbit Probatio, Qui Dicit, Non Qui Negat (“O ónus da prova recai sobre a pessoa que afirma, não sobre quem nega”), é reconhecido como um princípio bonito em teoria, mas na prática, para os pobres miseráveis e para os que carregam a tez mais escura, o veredito é apenas um — culpado, até que se prove o contrário.
Culpado como Anthony, de vinte anos, no dia 4 de novembro de 1981, ao lado de quatro homens negros vestidos iguais a si, diante de um espelho na sala de identificação da esquadra de polícia em Syracuse, Nova York. Do outro lado do vidro, Alice, uma estudante branca de dezenove anos esforçando-se para lembrar o rosto do homem que meses antes a havia violado sexualmente. Ela não conseguiu identificá-lo naquele momento — só mais tarde, já com Anthony sentado no banco dos réus, negando de pés juntos ter cometido tão hediondo crime, é que ela o identificou como seu agressor. Com base no depoimento desta e em um pelo púbico que, à luz da ciência forense de hoje, colocaria o caso em águas de bacalhau, o jovem Anthony foi condenado, à semelhança do enredo do premiado romance O sol é para todos, de Harper Lee.
Nos anos que se seguiram Alice Sebold lutou para negar o papel da eterna vítima que o mundo à sua volta lhe tentou impingir e encontrou na literatura a sua salvação. Em 1999, ela contou seu lado da história no seu livro de memórias Sorte, narrando com particular detalhe a violenta violação que sofreu e o trauma que nunca será apagado da sua memória. Anthony, por sua vez, passou mais de dezesseis anos na prisão e 23 no registo dos agressores sexuais até que um plot twist de proporções hollywoodianas se dá. Timothy Mucciante, um produtor executivo que trabalhava na adaptação cinematográfica de Sorte, identificou tantas discrepâncias alarmantes quando lia o livro de Alice que pagou de seu próprio bolso os serviços de um investigador privado, que recolheu e passou provas cruciais para as mãos dos advogados que acreditaram na inocência de Anthony. A 22 de novembro de 2021, Anthony Broadwater, um ex-marine do Exército americano com 61 anos, foi finalmente exonerado por um tribunal de Nova York.
Pedido de desculpas
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Depois disso, o pedido de desculpas. A sra. Sebold, oito dias após a exoneração, disse: “Quero dizer que realmente lamento muito por Anthony Broadwater […]. Lamento ainda o facto de meu próprio infortúnio ter resultado na condenação injusta do sr. Broadwater, pela qual ele cumpriu não apenas dezesseis anos atrás das grades, mas de maneiras que ainda servem para ferir e estigmatizar, quase como uma sentença de prisão perpétua”.
O pedido de desculpas, ainda que sincero, ficou aquém. Deixou de fora elementos importantes sobre a verdade e a responsabilização. Sebold conseguiu distanciar-se do homem que foi preso erroneamente por um crime cometido contra ela. Afirmou que as questões sistémicas (isto é, racistas) no sistema judicial americano não eram “um debate, ou uma conversa, ou mesmo um sussurro quando denunciei a minha violação em 1981”. Ela reconheceu o sistema que colocou um homem inocente na prisão, mas nunca reconheceu uma única vez o facto de esse mesmo sistema ser inerentemente racista. De facto, as palavras “raça” ou “racismo” ficaram omissas quando esta se dirigiu ao exonerado na sua declaração. Essa omissão, infelizmente, é uma forma de se desculpar da realidade inconveniente de que ela, na sua condição de vítima, também colaborou — ainda que involuntariamente — com esse mesmo sistema racista para colocar Anthony na prisão.
Tanto na literatura como no cinema, desde a invenção da América, não faltam exemplos de como a Justiça está constantemente a mudar e a moldar-se de acordo com a conveniência de quem detém o poder. No livro O direito ao sexo, Amia Srinivasan escreve: “Para muitas mulheres negras, a injunção feminista dominante ‘Acredite nas mulheres’ e sua hashtag viral #IBelieveHer levantam mais questões do que resolvem. Em quem devemos acreditar, na mulher branca que diz que foi estuprada, ou na mulher negra ou castanha que insiste que seu filho está sendo incriminado?”. Há uma longa e sórdida história na América de mulheres brancas acusando falsamente homens negros de estupro, e nem sempre a justiça foi tratada dentro da esfera legal. Não são poucas as canções, os livros e os artigos de jornal que dão conta de milícias brancas e corpos negros sendo linchados por terem ousado olhar para uma mulher branca. Emmett Till, o menino de catorze anos brutalmente assassinado no Mississipi em 1955, continua uma ferida aberta.
O projeto de adaptação de Sorte para o cinema foi cancelado e a editora do livro anunciou que vai deixar de o publicar até uma futura revisão. Anthony, que depois de todo o suplício não guarda um pingo de rancor no coração, perdoou Alice e está no seu direito. Ela continua a ser vítima de um crime e ele, vítima de uma injustiça perpetrada por um sistema obcecado em caçar negros, esquecendo-se de proteger Alice, com os cuidados de que necessitava, e de proteger a inocência de pessoas que se parecem com Anthony, pois para elas o ónus da prova recai sempre sobre a pessoa que nega, nunca sobre quem acusa
Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.
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