Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

As aventuras de Guille e Belinda

As fotos de Alessandra Sanguinetti mostram o que não se vê: a amizade amorosa entre as meninas e o modo como os rapazes estragam esse namoro

01ago2021 | Edição #48

The Adventures of Guille and Belinda (As aventuras de Guille e Belinda, Mack, 2021) desenrolam-se como um romance que se conta em duas linhas: era uma vez duas meninas amigas, Guillermina e Belinda, que viviam numa aldeia longínqua da Argentina. Eram inseparáveis até o dia em que se apaixonaram.
 


Belinda com Rosita
 

Talvez o acordar do Verão eterno que foi o enamoramento das duas meninas sejam as costuras da cesariana de uma delas, tornada mulher. Ainda agora brincavam ao faz-de-conta e, num virar de página, sem se perceber como, uma delas (como a outra antes dela) deu à luz um brinquedo de carne e osso. Sanguinetti faz nascer o menino de uma página a outra, por concepção fotográfica, ou não fosse essa a história de duas crianças. A Fotografia substitui-se à concepção e cria a sua terra, roupas, adereços oníricos, com que Sanguinetti emula a imaginação das adolescentes, levando Guille e Belinda a encarnar na aldeia, à luz do dia, aquilo que, quem sabe, sonharam de noite. Sanguinetti opera no território do milagre e mostra o que não se vê: os sonhos das crianças, dos animais e da natureza, a amizade amorosa das meninas com as suas melhores amigas, o modo como os rapazes estragam sempre esse namoro.

O sono da história

Há um sono na história e um sono da história, de que nem as suas paixões e gravidezes as acordam. Sanguinetti desenrola o fio e deixa migalhas pelo caminho: o dorso de um cavalo branco iluminado, o ar contristado da amiga quando a outra arranja um namorado, as paredes por rebocar do pequeno casebre onde vivem, os corpos e as caras das duas, primeiro corados e curiosos, depois, até serem jovens mulheres, ameninados e cheios de tempo de mais. Alguma coisa estragou o feitiço de Guille e Belinda: o tempo fixado por Alessandra Sanguinetti. E nem a simpatia da máquina as salvou de terem crescido. Os corpos delas vão deixando de ser os mesmos. A vivacidade e a paciência da infância dão lugar a um cansaço precoce. A paixão que tinham uma pela outra faz-se ciúme, e é enciumadas que se concebem mulheres. Há qualquer coisa de mulheres traídas e moças cortejadas no modo como Guille e Belinda se trocam uma à outra pelos seus namorados.


Belinda e Guille em  “As Ofélias”
 

No romance breve Foi assim (È stato cosí, 1947), Natalia Ginzburg deixou uma boa legenda para o fim dos seus sonhos: “Quando uma moça está muito só e faz uma vida bastante monótona e cansativa com muito poucos trocos no bolso e luvas gastas, corre atrás de muitas coisas com a imaginação e fica sem defesa perante os enganos e os perigos que a imaginação prepara todos os dias a todas as moças”. As aventuras do título são esses perigos e esses enganos, a aproximação da objectiva e a forma como a objectiva as resgata, dia após dia, aos perigos e aos enganos que a lente lhes lança. Ou talvez não. E, pensando fotografar duas crianças, é a fotógrafa, e não elas, quem se deixou enfeitiçar pelos enganos dos seus segredos.

As fotos de Alessandra Sanguinetti mostram o que não se vê: a amizade amorosa entre as meninas e o modo como os rapazes estragam esse namoro

As aventuras de Guille e Belinda pouco ou nada contam. Sanguinetti revela como a infância e a adolescência são todo o tempo e tempo nenhum. Parece que ali, atrás do sol posto, não acontece nada e é preciso inventar-se modos de nada se passar. A idade mudada é um nada, como nada é o tempo desenhado nos corpos. Então, as meninas brincam uma com a outra e são a boneca uma da outra. Guille, a boneca de Belinda; Belinda, a boneca de Guille — e, num gesto clemente e prazeroso, deixam Alessandra Sanguinetti ver. Não sabemos, ao folhear estes livros maravilhosos, quem é a narradora, quem vai à frente. Mas nada obsta a que sejam as meninas as autoras da história e a máquina fotográfica — que nunca esclarece, mas também nunca se esquiva desse destino — apenas uma criança indefesa.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.