Coluna

Jefferson Barbosa

Refazenda

Sertão negro, contracolonizar e as pedagogias da navalha

Arte Ocupa e as pontes que ligam as periferias de Manaus, a luta poética de Ana Mumbuca e a linguagem como encruzilhada

15nov2024 • Atualizado em: 06dez2024

“Um rapaz delicado e alegre que dança e requebra é demais”, apesar “da violência da noite e o movimento do tráfego”, como disse Belchior, para mim são versos tão fortes quanto o sampleado por Emicida em “AmarElo”: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Talvez a força vital da arte seja justamente essa: espalhar beleza e encantamento onde só se vê lama, lixo e destruição.  

Rosivania na velocidade dos igarapés, de JuPesqueira, na exposição Ocupa Mossoró (Divulgação)

Assim o coletivo Arte Ocupa vem transformando a realidade nas pontes que ligam as periferias da cidade de Manaus. Também entra na roda a luta quilombola de Ana Mumbuca, que no Jalapão organiza movimentos de defesa de uma existência poética principalmente para a população negra, de luta social mas também de poesia. 

No mês da Consciência Negra, trazemos ainda um curta-metragem que vem usando a linguagem como encruzilhada. Por fim, temos a programação especial da Casa de Cultura do Parque, a nova temporada do podcast da Geledés (Instituto da Mulher Negra) com a Fundação Tide Setubal e a beleza que é o Sertão Negro de Dalton Paula.

ENTREVISTA • Arte Ocupa

Coletivo manauara constrói pontes e também as ocupa

por Marina Lattuca

Uma fotografia da artista visual Juliana Pesqueira flutua esticada entre as duas margens de um igarapé. Outra, do fotógrafo Rivotrist, se escora ao lado de um pack de Skol, no balcão de uma pequena mercearia de bairro. Dentro da caçamba de uma picape antiga, uma imagem da própria se equilibra entre bicicletas e outros itens sendo transportados. Fosse o cenário Rio ou São Paulo, essas imagens estariam já sem vida, condenadas às quatro paredes de um cubo branco qualquer. Felizmente, não é. A paisagem de que falamos é a comunidade de Mossoró, em Manaus, onde o coletivo de artistas Arte Ocupa realizou a exposição Ocupa Mossoró.

Descontando, de André Cavalcante (Divulgação)

Em 2021, Sarah Campelo e Marcelo Rufi, dois estudantes manauaras do curso de artes visuais da Universidade Federal do Amazonas, resolveram se reunir para pensar seus descontentamentos com a arte e a educação. Aos poucos, novos estudantes, artistas e designers se juntaram ao movimento e o coletivo assumiu de vez uma postura artivista. O Arte Ocupa começa então um verdadeiro trabalho de base: oferece materiais de pintura às crianças de bairros periféricos da cidade, ocupa pontes abandonadas pelo Estado, leva grupos de casas de acolhimento a visitas guiadas por instituições de arte, promove discussões sobre justiça climática — a lista é grande. Amigos e artistas, Campelo e Rufi tocam hoje junto a comunidades uma programação intensa de exposições, mobilizações e oficinas em Manaus. 

Visitei vocês em Manaus e me lembro da camisa do coletivo que levava nas costas a frase “artistas trabalhando”. Arte é trabalho? 
Marcelo Rufi: Tudo começou quando roubei uma placa lá de São Paulo, que tinha escrito “homens trabalhando”. A gente percebeu que quando ia para a rua fazer grafite, oficinas e intervenções vinham muitas abordagens truculentas de pessoas que não entendiam o que estava acontecendo. Foi aí que a gente resolveu colocar a frase na camisa e na placa. Acho que para nós, enquanto artistas, é importante ensinar para esse público, ainda leigo na arte urbana, que aquilo é um trabalho. Então, diria que é uma estratégia de sobrevivência: tanto a camisa, quanto a placa.

Alma de criança, de Dighetto (Divulgação)

Sarah Campelo: A gente vive em Manaus e aqui temos uma luta muito complexa quando o assunto é cultura. Foi algo que aprendi na academia: encarar a arte como profissão. Para quem quer ser artista, para quem quer que a arte coloque o pão na mesa, ela tem que ser uma profissão e o artista tem que ser um profissional.

A atuação do Arte Ocupa em Manaus adota uma postura muito prática de interferir na manutenção de espaços onde o poder público simplesmente não chega. Podem falar mais sobre isso? 
SC: Tem um funk que diz: “enquanto eles não fazem de lá, a gente vai fazer um tudo por aqui”. A gente vai até onde nossa mão chega. Temos construído projetos com editais públicos, o que algumas pessoas criticam, principalmente na arte de rua, mas a gente bate muito nessa tecla: esse dinheiro é nosso. Nós pegamos esse incentivo e potencializamos em manifestações culturais para a cidade. Chegamos a um ponto em que deu um estalo e entendemos que existe uma responsabilidade social e comunitária com o nosso território. 

O projeto Ocupa Pontes traz luz aos impactos das mudanças climáticas na cidade de Manaus. Por que ocupar especificamente as pontes? 
MR: Não basta construir pontes, é preciso ocupá-las. As pontes funcionam como ligações, principalmente em Manaus, que é uma cidade com muitos rios e igarapés. Para as crianças, a ponte é vista de uma forma mais lúdica. É muito comum, por exemplo, elas usarem esse espaço para soltar papagaio. A gente parte justamente desse desejo de colorir e ocupar. Se aquilo faz parte do território da criança, é importante que essa ponte seja bonita, tenha uma identidade. Aqui está uma seca imensa, então a ponte que devia ter água passando por baixo só tem lixo. 

Mergulho no céu, de Rio Negrina (Divulgação)

SC: A ponte do rio Negro, por exemplo, é pensada apenas para os carros. Manaus é uma cidade que enterrou seus rios e o Ocupa Pontes traz um questionamento sobre para quem são feitas as cidades. E aí, pensando nessa questão da seca extrema que a gente está vivendo, as pontes perdem uma parcela de significado, porque você pode andar por baixo, onde já não tem mais rio. A gente se questiona sobre para onde os rios estão indo e por que eles não querem mais estar aqui. 

Hoje a palavra “ocupação” é tão usada e abusada que se esvazia de sentido. No caso do Arte Ocupa, entretanto, ela tem seu sentido restaurado. Vocês se ocupam da arte e ela também parece ocupar bastante vocês.
SC: O Marcelo [Rufi] fez uma exposição chamada Pretoberâncias, um projeto construído totalmente por pessoas pretas, dentro do Tribunal de Justiça do Amazonas. Ele saiu de um projeto que era literalmente debaixo de uma ponte para uma exposição num espaço onde a maioria das pessoas pretas que entram é em situação de vulnerabilidade, privação de liberdade… No dia 5 de novembro, elas entraram lá enquanto artistas.

PASSEIO • Sertão Negro

Ateliê de Dalton Paula em Goiás contribui para formação de artistas se relacionando com o território em volta
Um terreiro, uma oficina de arte ou uma escola: o Sertão Negro é todas essas coisas, sem se prender a definições. Ateliê de Dalton Paula, quintal de plantas e solo para aulas de capoeira, por exemplo, o espaço localizado em Goiânia também abriga uma residência artística que no último ano foi agraciada com a bolsa Soros Arts da Open Society Foundations. Assim, tem alimentado novos protagonismos, permitindo uma conexão do público e dos artistas com um tempo mais pausado.

O espaço ainda conta com uma biblioteca que leva o nome da artista Rosana Paulino, fonte de investigação para os residentes que passam pelo ateliê. Há também um cineclube que realiza sessões mensais para a comunidade, no último final de semana do mês, além de oficinas regulares, como a de capoeira do Mestre Guaraná. Dalton Paula é artista com trabalhos já expostos no MASP, na Pinacoteca de São Paulo e no Goethe-Institut de Lagos, na Nigéria. Publicou O sequestrador de almas com Lilia Schwarcz pela Cobogó.

PERFIL • Ana Mumbuca

Diretamente do Jalapão, poeta conflui conhecimentos que abrigam de Nêgo Bispo a Dandara dos Palmares

Sou um pedacinho de muitos 
Sou quem caminha e vira o caminho
Eu sou pelo que fomos
Para além do que fizeram com nós
Ana Mumbuca

Poeta que me foi apresentada por Antonio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, quando estava trabalhando numa edição da revista serrote sobre urgências para o campo progressista no terceiro governo Lula, Ana Mumbuca é cria da comunidade quilombola que carrega no sobrenome, o Quilombo Mumbuca, no Jalapão, em Tocantins. Da poesia a articulações de sua comunidade e de outras na busca por avanços em políticas públicas, ela trabalha na preservação de tradições muito particulares de sua região, como a cultura do capim-dourado. A existência poética, afirma Ana Mumbuca, sempre existiu na circularidade, mas floresceu quando fez a travessia do mundo quilombola para o mundo urbano. 

Ana Mumbuca (Reprodução)

Para além da arte do verso, a poeta diz que é possível (e necessário) se comunicar com as águas, os animais e o céu, uma grandeza das relações para além da humana. Na linhagem de outras mulheres negras, faz da escrita uma parte da luta coletiva, cultivando ideias como a do compartilhamento e a da contracolonialidade. Publicou Voo das abelhas da terra (Chão da Feira) e Quatro cantos (roça de quilombo), em coautoria com Antônio Bispo dos Santos, Maria Sueli Rodrigues e Luiz Rufino.

Mais pra ficar ligado

Cena do curta Pedagogias da Navalha (Divulgação)

‘Pedagogias da navalha’, curta na mostra Ifé

Pedagogias da navalha — se a palavra é um feitiço, minha língua é uma encruzilhada, curta de Colle Christine, Tiana Santos e Alma Flora, é um documentário de linguagem híbrida que parte do conceito “oferenda fílmica” e já foi exibido em mais de cinquenta festivais, como Mostra Ifé, Sinédoque e Encontro Zózimo Bulbul, arrematando até agora nove prêmios. Pedagogias da navalha provoca, através da poesia e da oralidade, uma história da identidade e entidade travesti, um ebó não linear, sem se pautar por estigmas, traumas ou marginalizações, mas na diáspora afro. Colle Christine ressalta a importância das três diretoras contarem essa história, que surgiu a partir do encontro delas no curso do Cinema Nosso, projeto voltado para formar novas profissionais periféricas no audiovisual.

Cenas de gravação do podcast Essa geração (Divulgação)

Podcast ‘Essa geração’

Estreou este mês a nova temporada do podcast Essa geração, da Geledés — Instituto da Mulher Negra com a Fundação Tide Setubal. Na sua sétima edição, o programa está investigando o que de fato é cultura. As conversas giram em torno do conceito de multiculturalismo e refletem sobre manifestações brasileiras. Os cinco episódios falam ainda de oralidade, influências da diáspora, encruzilhadas culturais e transformação social por meio de equipamentos coletivos. A apresentação é de Arielly Tombô e Maria Irmany, alunas do curso Multimídia da instituição. 

Novembro negro na Casa de Cultura do Parque

Durante todo o mês de novembro, a Casa de Cultura do Parque está com uma programação que celebra a história e as conquistas da população negra. No dia 16 acontece o encontro “Literatura periférica: escritas, esquinas e conflitos” com Lilia Guerra, Wesley Barbosa e encerramento com o grupo Preta Batuque. Já no dia 23 será o Pocket Slam, que terá as poetas Laura Conceição, Matriarcak e Naiá Curumim ocupando a Casa.

Casa de Cultura do Parque — Av. Professor Fonseca Rodrigues, 1300, Ato de Pinheiros – São Paulo (SP) 

Editoria com apoio da Casa de Cultura do Parque

Em 2024, a Quatro Cinco Um estreia a editoria de cultura contemporânea, com com apoio da Casa da Cultura do Parque

Quem escreveu esse texto

Jefferson Barbosa

Jornalista, membro da Coalizão Negra por Direitos, Global Fellow da Fundação Ford, foi fundador dos coletivos PerifaConnection e Voz da Baixada e autor de A Mãe do mundo: vida e lutas de Mãe Beata de Yemanjá (Malê, 2023).