Para um ano de muitas lutas, um Carnaval como revolução

Refazenda,

Para um ano de muitas lutas, um Carnaval como revolução

A poeta e artista visual Tetê, Funkeiros Cults e novo filme de Yasmin Thayná

17jan2025 • Atualizado em: 22jan2025

Iê, vai lá menino
Mostra o que o mestre ensinou
Mostra que arrancaram a planta
Mas a semente brotou
E se for bem cultivada
Dará bom fruto e bela flor
Mestre Ezequiel

Para Mestre Peixe de Caxias

Em meio às notícias de fim das políticas de checagem de notícias falsas nas redes sociais — e o forte alinhamento de big techs como TikTok e Google a governos neoliberais e de extrema direita como os de Trump e Milei —, voltou à tona o debate sobre como o esforço de organizar e fazer uma utopia cotidiana não pode ser visto como uma etapa da luta por um mundo melhor. Mas é ela mesma (a utopia pela ação) a luta. O compromisso antirracista, a defesa da vida, da terra e da liberdade dos corpos das mulheres e LGBTs precisam estar em constante manutenção. 

Assim como a terra e o corpo das utopias, os sonhos também precisam de quem os cultivem. Não para uma colheita imediata ou por uma crença na resposta rápida dada pelo algoritmo, mas pelo significado de que, independente dos podres poderes, o Carnaval vai acontecer, o candomblé vai ser tocado, nossas famílias vão sobreviver. Como na capoeira, o jogo se compõe na roda, como dizia o agora saudoso Mestre Peixe de Caxias. Também na rua e onde tiver um berimbau, um atabaque, um corpo, ali se faz capoeira. Esse é o espírito dessa edição, que se descobre lendo. Boa leitura!

Tetê – poeta e artista visual em trânsito

A artista visual Tetê faz de poemas-posts autorais um meio de transportar seus seguidores para reflexões profundas e particulares. Além do Instagram, está envolvida em projetos como o mural na Galeria de Arte Corbiniano Lins (Sesc Santo Amaro, em Pernambuco) e a performance Lanchão. Nascida em Marabá (PA) e vivendo em Olinda (PE), traz a realidade no campus da faculdade de arquitetura e urbanismo da UFPE para sua produção, contestando funcionalidades cis-heteronormativas dos projetos arquitetônicos e dos planejamentos urbanísticos. Esse tema é abordado no ensaio Políticas espaciais do afeto, vencedor do primeiro lugar no concurso de ensaísmo da revista serrote, na edição 48, lançada em novembro de 2024. No texto, cruza arquitetura e vivências para disputar fronteiras historicamente construídas. Em fevereiro, inaugura sua primeira exposição individual, Cruzadas, no Museu do Homem do Nordeste (Fundação Joaquim Nabuco).

Você transita entre as redes sociais, a academia, as artes, e tudo a partir da palavra. Como essa influência se conecta com a literatura e com as outras artes que busca abordar?
É muito doido você me perguntar isso, no ano passado eu tive um contato com muitos circuitos de arte e são espaços de muito monopólio do conhecimento, como a revelação de fotografia analógica, por exemplo. Tive que lidar com esses espaços e, uma vez fazendo imagens sobre pessoas LGBTQIA+ e arquivos de depoimentos [Cruzadas é livremente inspirada no relato de Jackson Cavalcanti Jr.], tento pensar como tudo que eu quero pode se traduzir numa imagem de maneira intencional. Jackson é um dos criadores do Arquivo Público de Olinda, militante LGBT e fundador do GATHO (Grupo de Atuacão Homossexual). 

Artista visual Tetê (Marcela Cintra/Divulgação)

Eu nunca tinha nem pensado sobre tirar foto. A mídia vem muito depois da intenção. Essencialmente, [a influência] vem da arquitetura. O João Cabral de Melo Neto falava que a página do poema é um canteiro de obra. 

E no caso da poesia, como isso flui?
Às vezes é linha de chegada e às vezes é ponto de partida, sabe? Até o ano passado eu era muito ativa no Instagram. Ali, o texto é um ponto de partida, mas o final era muito mais uma catarse. Eu comecei a escrever na internet porque achava distante o que conseguia fazer nas exposições, que é um ambiente de competição muito doido em qualquer circuito. Não era para isso que eu tinha começado. Agora me retirei da internet. Mesmo influenciadores famosos que fazem propagandas de jogos de aposta online, que estão roubando as pessoas, precisam visceralmente que as pessoas vejam o conteúdo deles. A minha intimidade se tornou meu próprio trabalho. Agora estou criando mais camadas entre a internet e eu, dessa faceta poeta de internet. 

Quanto a internet pode democratizar a arte e quanto a arte pode fazer as pessoas terem uma cidadania mais plena?
Eu não sei se a internet democratizou a arte para mim. Quando comecei a escrever já estava dentro de um circuito, tendo interlocução. No sentido de pessoas que não sabem quem eu sou terem acesso ao meu trabalho é uma democratização sim. Mas essas plataformas são particulares: antes de eu tirar meu trabalho do online, a Meta me mandou um aviso de que usaria meus posts para inteligência artificial, e eu não quero trabalhar de graça.

Fotografia da performance Lanchão(2022), de Tetê

Os brasileiros têm um tempo de tela muito grande. Como a gente não tem acesso a lazer na vida real, fica no espaço virtual. Não sei se democratizou. Recentemente, descobri duas coisas que se fala sobre ser artista: você tem que estar nos lugares e ter presença na internet. Essas duas coisas nunca me levaram a nada, nunca me deram emprego. Foram coisas que fiz porque me interessava pensar sobre o espaço virtual e também a possibilidade de ter encontros. A arte como veículo de cidadania também é ambivalente: é fácil um trabalho ser violento quando não tem sensibilidade.

Funkeiros Cults – coletivo de Manaus

Funkeiros Cults surge como projeto social, em Manaus, numa periferia chamada de Compensa, um grande complexo entre asfalto e rios (Compensa I, II e III). Dayrel Teixeira começou a iniciativa depois de cruzar a ponte, nas palavras dele, quando começou a trabalhar no centro da cidade.

Dayrel Teixeira

Dayrel começou a trazer livros a que tinha acesso, se articulando com a comunidade e amigos de infância, e oferecendo-os para as crianças da região, acreditando no poder da linguagem e da comunicação. Assim surgiram os memes de crianças e moradores lendo os livros e traduzindo seus enredos num dialeto de periferia. O sucesso dos memes fez surgir uma movimentação de outras periferias afirmando o gosto pela literatura. O trabalho de formação de novos leitores é bem menos conhecido que os memes nas redes — e é justamente o que buscam fortalecer agora.

Para os Funkeiro Cults, o rap, o funk e o grafite são literatura. Diante de um cenário complexo, os criadores buscam falar do próprio bairro, sem ignorar a seca e a violência urbana, promovendo arte e debates caros às periferias. Este ano, através de oficinas na própria Compensa, eles avançam em não ser mais objeto de estudo, colocando as crianças e adolescentes dali para estudar sobre seus territórios.

‘O tempo é um pássaro’, de Yasmin Thayná

Filme que fez sua estreia no Festival do Rio e no Festival de Cinema Negro Zózimo Bubul no ano passado, O tempo é um pássaro é um curta da diretora Yasmin Thayná que acompanha a trajetória de Zuri, personagem que vive num lugar onde ninguém mais fala sua lingua e em que seu pertencimento está por um fio. 

O tempo é um pássaro, de Yasmin Thayná (Angelo Pontes/Divulgação)

O filme de Thayná, que também é a diretora de Kbela, fala sobre um estranhamento na família consanguínea. Zuri vive com uma família numa casa onde o entorno é uma atmosfera tensionada. Seu universo particular é solar, mas o local onde viveu a vida inteira não dialoga com isso. “Isso é comum a jovens negros que vivenciam alguma mobilidade social ao acessarem o ensino superior”, diz Thayná. Essa transformação dessa juventude ao deixar o lugar onde nascem, a base formadora do caráter, é algo que a diretora pretende seguir investigando em seus próximos trabalhos. 

Entre os trabalhos recentes de Thayná, estão a série Amar é para os fortes (Prime Video), livremente inspirada no álbum homônimo de Marcelo D2, que ela dirigiu com Katia Lund, e o curta documentário Fartura, um ensaio a partir de imagens domésticas feitas por famílias negras de periferias e favelas cariocas sobre viver em comunidade.

A diretora Yasmin Thayná (Acervo pessoal)

Suas referências vão de videoclipes até grandes nomes do cinema, como Spike Lee e Francis Ford Coppola. Mas também da música, como Arthur Verocai e Larinhx. O trabalho da diretora também conversa com nomes como Allencar (Muito Cria) e Priscila Roxo, que retratam a periferia nas artes visuais.

LISTÃO

Os poemas de ‘Não caberá’, de Paulo Vicente Cruz

Não caberá, de Paulo Vicente Cruz

O novo livro de Paulo Vicente Cruz, Não caberá, reúne poemas que dialogam com o estilo haicai e nomes como Bashō, Takuboku Ishikawa e Manoel de Barros ao falar das pequenas coisas. Dividido em três partes — “Assimetrias”, “Pisar na grama” e “Poemas demorados” —, convida à reinvenção do cotidiano. Escrito paralelamente a um romance que deve ser lançado este ano, a coletânea, publicada pela Quelônio, foi concebida, segundo o poeta, durante um apagão no ano de 2023 em São Lourenço da Serra, no interior de São Paulo.   

O poeta Paulo Vicente Cruz (Divulgação)

“Durante a escrita fui tendo contato com outras coisas que reforçaram para mim a vontade de publicar o livro, como saber que o Paulo Colina (fundador da Cadernos Negros) traduziu poemas do Ishikawa”, conta o autor. Cruz também escreveu Enquanto os gigantes dançam, que reúne contos, além de textos para a revista piauí (que podem ser lidos nesse link) e para a edição 40 do Cadernos Negros. Como afirma Tiago D. Oliveira no posfácio, “toda matéria para a poesia é cifrada nos rearranjos questionados agora, no espaço a que chamamos de escrita”.

Passeio no parque

No próximo dia 25, a Casa de Cultura do Parque abre suas portas para celebrar o aniversário da cidade de São Paulo com o Loba Festival Literário. O nome vem de  Literaturas e Obras de Autoras e o evento é voltado a promover a escrita de mulheres no Brasil, dar visibilidade a suas produções e combater estereótipos de gênero.

A programação inclui painéis com nomes como Mel Duarte e Natalia Timerman, premiação e encerramento com show do Quarteto Jacarandá. A participação é gratuita.

Onde: Casa de Cultura do Parque — Av. Professor Fonseca Rodrigues, 1300. Alto de Pinheiros, São Paulo

Editoria com apoio da Casa de Cultura do Parque

Em 2024, a Quatro Cinco Um estreia a editoria de cultura contemporânea, com com apoio da Casa da Cultura do Parque

Quem escreveu esse texto

Jefferson Barbosa

Jornalista, membro da Coalizão Negra por Direitos, Global Fellow da Fundação Ford, foi fundador dos coletivos PerifaConnection e Voz da Baixada e autor de A Mãe do mundo: vida e lutas de Mãe Beata de Yemanjá (Malê, 2023).