Coluna

Jefferson Barbosa

Refazenda

Arte, linguagem e território

Audiovisual das periferias de Recife, couro e tinta do sertão baiano, Bienal das Amazônias e a festa das festas no Circo Voador

18out2024

Se a imaginação pode nos levar onde nunca estivemos, a arte certamente é um condutor competente quando precisamos transformar a realidade em volta. Assim vive há oito décadas o artista feirense Juraci Dórea, que fez do sertão matéria-prima e principal espaço de exposição de seus trabalhos. Também é a capacidade de materializar sonhos que faz acontecer a Bienal das Amazônias, espaço localizado em Belém e que atualmente está com cinco exposições reunindo artistas de vários lugares, mas dando centralidade aos do Norte.

Saída da Turma Utopia no bairro Rocha Miranda, carnaval do subúrbio carioca. (Ratao Dinis/Divulgação)

Para destruir os castelos que agoniam a gente no cotidiano sem abrir mão dos combates necessários, Yane Mendes traz da periferia de Recife imagens que rompem com os estereótipos e fazem a gente querer enxergar o que ela vê ao tornar o mundo um lugar mais bonito. Por último temos literatura, dos livros e de festas.

ENTREVISTA • Juraci Dórea

Aos oitenta anos de idade, Juraci Dórea abre uma grande exposição individual com curadoria de Deyson Gilbert na galeria Martins&Montero, em São Paulo, que reúne obras desenvolvidas no universo próprio do artista baiano de Feira de Santana, cidade onde começa o sertão e na qual ele ainda vive. Seu universo é composto de vaqueiros, de feira livre, muita natureza, gente.

Juraci Dórea (Moab Conceito/Divulgação)

Desde os anos 70, Dórea trabalha com matérias próprias da paisagem, como couro, madeira e carvão, e cria esculturas e murais que ficam na geografia sertaneja. O tempo e a natureza muitas vezes atuam como correalizadores de seus processos, como nas esculturas em Monte Santo, Euclides da Cunha e Canudos, parte do Projeto Terra, por cidades da Bahia.

Escultura do Campo do Gado, Feira de Santana – BA (1984)(Martins&Montero/Divulgação)

Essas intervenções no interior do estado tem como público primário não o visitante urbano de instituições culturais, mas os próprios moradores da região. Ainda assim, sua obra já circulou para muito além do estado nordestino. Em 1989, ele participou das bienais de Veneza e de Cuba; em 2015, esteve na Bienal do Mercosul, que aconteceu em Porto Alegre; e, no ano passado, teve uma exposição solo na Galeria Jaqueline Martins, em Bruxelas. Seus trabalhos também estão no acervo do MAM da Bahia e do Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana.

Como preservar o espírito de Feira de Santana num artista que circula em circuitos além do sertão sem sair do lugar a que pertence?
Não conseguiria criar o que criei em outro local, nunca me empolgou a ideia de ir para São Paulo. Essa escolha foi por ter meu trabalho ancorado numa realidade minha, numa realidade de vivências, da minha região e do meu povo. Eu achava que poderia criar meu trabalho na própria região.

Escultura do Lajedo, Valente – BA (Martins&Montero/Divulgação)

Quando comecei o Projeto Terra, por cidades da Bahia, compreendi que fazia mais sentido do que expor nos espaços oficiais da arte, que tem toda uma burocracia dos salões, tendo todo espaço do sertão e todo um público com quem eu poderia dialogar. A questão da memória sempre me preocupa muito, esse imaginário, essa cultura que vai se apagando fica na minha obra e é redescoberta nas escolas, pelas crianças, e atua no futuro para preservar a história de toda uma região.

Como percebe a transformação do sertão dos anos 70 e 80 para cá?
À medida que Feira de Santana começa a ficar uma cidade mais ligada a problemas urbanos, eu vou para o sertão profundo. Eu buscava essa identificação com outras regiões, porque lá estava o sertão mais profundo. Acontece que, com a internet, parece que o mundo ficou um só, tem a questão da violência, do trânsito e há uma mudança muito grande também nessas regiões.

Terra VI (1981-1984) (Martins&Montero/Divulgação)

Eu vivi muito os ciclos das secas, hoje isso minora um pouco. Embora o impacto global seja maior, para as pessoas que moram nos povoados, diminuiu. Meu trabalho captava também esse espaço árido para circulação das pessoas, de sobrevivência dos animais.

Sobre a exposição, o que vamos encontrar?
Se percebe na exposição que há toda uma lógica da cultura do interior, porque Feira [de Santana] marca a entrada pro sertão, especificamente o da Bahia. As várias fases que foram elencadas por Deyson [Gilbert, curador,] vão permeando toda essa cultura sertaneja, então tem pinturas, objetos, literatura de cordel. Eu parto das minhas raízes, mas meu diálogo é com a humanidade.

Breveterno: notas para uma lírica político-mística da estiagem, até 21 de dezembro. Martins & Montero.

PASSEIO • Bienal das Amazônias

Pavilhão permanente reabre com cinco exposições em Belém e conta com Keyna Eleison, Rafa Bqueer e Jota Mombaça

A mostra Insurgências e o Contraponto do Longe, inspirada em Ananse (ancestral africano) e na leitura afetiva de Zélia Amador de Deus, trata dos deslocamentos forçados da diáspora africana até a gentrificação das cidades e destaca a solidariedade, a criatividade e resistência das populações negras na criação de tecnologias sociais e culturais. A curadoria coletiva é de Debora Oliveira, Keyna Eleison, Emerson Caldas e Junior Negão.

Djanira #1 (2024), de Jota Mombaça. Argila mista queimada (Sertão Negro/Divulgação)

Festas, Sambas e Outros Carnavais, inaugurada no dia 10 de outubro e que homenageia nomes da cultura popular como Pinduca e Mestre Damasceno, é outra mostra no espaço que conta com curadoria de Angela Mascelani e de Lucas Van de Beuque. Também são lembrados Dona Coló, especialista em ervas, no ramo das tradições curativas e artistas de máscaras como Mestre Vital e Mestre Nato. Entre os trabalhos, há referências diretas ao Carnaval das Águas do Baixo Tocantins e aos bois bumbás da região.

Bumba meu boi, de Nhozim (Acervo Museu do Pontal/Divulgação)

Além dessas, estão em cartaz As Revoltosas, da arqueóloga e artista visual Cristiane Martins, Moeda Cabana, do fotógrafo André Penteado (ambas curadas por Vânia Leal) e Passos de Encantamento, esta última com curadoria de Mariah Rafaela Silva e Ana Clara Simões Lopes, que oferece uma experiência sensorial onde convenções de gênero se dissolvem poeticamente.

Bienal das Amazônias. R. Sen. Manoel Barata, 400. Campina – Belém.
Quarta e quinta (9h às 17h), sexta e sábado (10h às 20h), domingos e feriados (10h às 15h)

PERFIL • Yane Mendes

Ao buscar na internet Rede Tumulto, referências de movimentos de mulheres negras, cinema produzido em Recife, ou mesmo articulações que vêm produzindo um audiovisual crítico ao olhar branco e enviesado da indústria cultural do Sudeste, você não vai demorar para chegar ao nome de Yane Mendes (@eu_sou_yane). Cria da Favela do Totó, em Recife, Mendes produz narrativas para denunciar ataques a direitos essenciais na periferia da capital pernambucana.

A artista verte discursos diretos em forma de ensaio, como fez nos atos pela democracia em 2022, mostrando a distância entre o discurso da esquerda e o cotidiano dos trabalhadores. No seu perfil e nos links de seus trabalhos (como o curta A live delas, realizado no programa IMS Convida), encontramos bonitas fotografias das crianças da sua área, com muita dança, do brega funk aos clássicos contemporâneos da favorita Raphaela Santos.

Yane Mendes reivindica a vida do seu lugar através do próprio olhar e afirma o sonho como um lugar em construção.


Mais pra ficar ligado

rodrigo de odé publica livro que reúne Exu e Fela Kuti para discutir o poder

O ator rodrigo de odé, um dos protagonistas de Malês (com direção de Antonio Pitanga), está lançando o livro Elegbára Beat: um comentário épico sobre o poder. Partindo de conexões do mito de nascimento de Exu Elegbára com Mestre Moa do Katendê, George Floyd e Miguel Otávio, o autor reflete sobre as relações de poder que agregam referências de Mãe Beata de Yemanjá, Abdias Nascimento e Conceição Evaristo.

Publicado pela editora Kitabu, o livro está sendo lançado com uma série de oficinas pelo país, que trazem capoeira, leitura dramatizada ao som de afrobeat e muita intervenção do entorno, como presenciei no Centro de Cultura e Arte Batakerê, em Ermelino Matarazzo, na Zona Leste de São Paulo.

Flup no Circo Voador homenageia Beatriz Nascimento com Sueli Carneiro, Bernardine Evaristo, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí e Lia de Itamaracá

A Flup, Festa Literária das Periferias, já é um dos eventos mais tradicionais do calendário anual do circuito literário — um movimento que mobiliza diferentes lugares do Rio de Janeiro, mas também do Brasil e do mundo.

Neste ano, a Flup acontece entre os dias 11 e 17 de novembro, no Circo Voador, no Rio de Janeiro. Com uma programação tendo maioria de mulheres, esta edição do festival homenageia a historiadora e ativista sergipana Beatriz Nascimento.

Beatriz Nascimento (Arquivo Nacional/Reprodução)

Amplamente conhecida por trabalhos como Eu sou atlântica (imprensa oficial), O negro visto por ele mesmo (Ubu) e o documentário Ôrí, com Raquel Gerber, Nascimento será lembrada por Ana Flávia Magalhães Pinto, Tiago Rogero, Ana Paula Lisboa, Sueli e Luanda Carneiro, Bernardine Evaristo, Anielle Franco e Tiganá Santana, entre outros. A festa contará ainda com shows de Dona Onete, Lia de Itamaracá e Fabiana Cozza.

Editoria com apoio da Casa de Cultura do Parque

Em 2024, a Quatro Cinco Um estreia a editoria de cultura contemporânea, com com apoio da Casa da Cultura do Parque

Quem escreveu esse texto

Jefferson Barbosa

Jornalista, membro da Coalizão Negra por Direitos, Global Fellow da Fundação Ford, foi fundador dos coletivos PerifaConnection e Voz da Baixada e autor de A Mãe do mundo: vida e lutas de Mãe Beata de Yemanjá (Malê, 2023).