Fotografia de Diego Bressani

Refazenda,

Alimentando trajetórias

A floresta como ancestral das periferias, uma peça roda escolas exercitando a humanidade para pessoas negras no Brasil, Aguidavi do Jêje e a artista que leva o barro do recôncavo do Rio para as artes plásticas

20dez2024 • Atualizado em: 21dez2024

Se o povo da Bahia e o povo do Rio de Janeiro se juntassem para criar uma única coisa, certamente seria algo musical, sonoro e nas levadas da diáspora africana ou influenciado pelos povos originários. Este mês, trazemos o grupo Aguidavi do Jêje, entidade musical da Bahia liderada por Luizinho do Jêje; de São Gonçalo, no recôncavo fluminense, a artista Gabriella Marinho faz do barro sua matéria-prima para nos tocar; e do Distrito Federal chega a peça teatral de Ana Flauzina que vem ocupando escolas e fazendo que estudantes possam julgar o racismo como crime que é. 

Aguidavi do Jêje

Orquestra afro-percussiva e projeto sociocultural de desenvolvimento comunitário idealizado por Luizinho do Jêje no Terreiro do Bogum, o Aguidavi do Jêje lançou seu primeiro álbum e permitiu que todos possamos ter contato com o universo que circula aquele pedaço secreto e sagrado da Bahia. O nome do grupo vem da baqueta utilizada para tocar os atabaques no candomblé, aguidavi, e Jêje remete à nação do terreiro, vinda do Benin. No Aguidavi do Jêje são catorze integrantes, ogãs, muitos deles ali desde criança. 

(Diego Bresani/Divulgação)

O grupo, que existe há vinte anos, é fruto de uma escola mantida no terreiro de candomblé, a exemplo do Pradarrum, liderado por Gabi Guedes; do Rum Alagbê, capitaneado por Iuri Passos no Terreiro do Gantois; e do Mo Xirê, no Ilê Omiojúàrô. Além do intercâmbio cultural, todos também realizam oficinas de criação de instrumentos com materiais recicláveis.

Luizinho do Jêje (Diego Bresani)

Além dos laços inegáveis com a religião dos orixás, o Aguidavi do Jêje também se conecta a grandes músicos brasileiros que se apropriam com grandeza das tradições negras pela música, como Moacir Santos e a Orkestra Rumpilezz, criada pelo maestro Letieres Leite. Indicado ao Grammy Latino este ano, o grupo se apresentou para milhares de pessoas na praça Mauá, no Rio, durante o festival Aliança Global, em novembro.

Gabriella Marinho

Gabriella Marinho esteve ao longo dos últimos meses ocupando o Sesc Pompeia com a exposição Argila-Griô. Quem passou por lá, além do trabalho da artista, pôde experimentar também seu ofício na prática em algumas oficinas que utilizam o barro como ponto de partida. Vivendo desde que nasceu na cidade de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, ela parte da escultura para dialogar com pintura, poesia, fotografia e audiovisual. Na cerâmica, trabalha memória, pertencimento e o próprio corpo em deslocamento.  

A artista Gabriella Marinho (Mari Bley)

Este ano, a artista esteve na galeria Abapiá com a exposição ÍGNEA, e antes participou de duas grandes mostras coletivas no Museu de Arte do Rio, Crônicas Cariocas e Um Defeito de Cor, esta baseada no romance de Ana Maria Gonçalves. Marinho foi também uma das indicadas na última edição do Prêmio PIPA, que premia novos nomes da cena e organiza mostras coletivas anuais. Além do trabalho como artista plástica, é educadora e jornalista, levando para as escolas, por meio de cursos livres, o contato com a arte para estudantes da rede pública.

Obras de Gabriella Marinho na exposição ÍGNEA (Eduardo Binato)

Luquinhas XV e o tesouro da melhoria

Ademar Lucas, também conhecido como Luquinhas, é ativista, skatista e articulador cultural da favela de Santo Amaro, no bairro do Catete, região central do Rio de Janeiro. No território, que é cena de grandes nomes da cena hip-hop, como BK’ e Filipe Ret, o filho do Seu Ademir e da Dona Maria Socorro é um farol para novas gerações.

Luquinhas inspira cenas culturais de outras regiões do país e da América Latina nos seus intercâmbios que quase sempre viram conteúdo nas redes sociais. Tudo na finalidade de trazer novas possibilidades, melhoria, como ele afirma. É o caso do coletivo Soulest, de Fortaleza, do Lá da Favelinha, de Belo Horizonte e do movimento Nepal Vive, do Amazonas. No próprio Santo Amaro, Luquinhas também caminha com iniciativas que surgiram nos últimos anos, como o Laboratório 2050.  

A mais recente empreitada envolve a construção de uma pista de skate no morro, feita com esforço da própria comunidade e trabalho voluntário. Através do Instituto Ademafia, guarda-chuva de todas essas iniciativas, promove ainda ações permanentes de educação e cultura para crianças e jovens de cinco a 21 anos. O trabalho artístico e comunitário são dois lados da mesma moeda. Mas além do skate, cultura e educação, Luquinhas também promove a festa: o Baile do Ademar é, nas palavras do articulador cultural, “um momento para celebrar nossa história, nosso talento e nossa resistência”.

LISTÃO 

Nielson Bezerra

Espírito das periferias, ancestralidades indígenas e africanas na Baixada Fluminense

Partindo da ideia de que o espírito da floresta é ancestral do espírito das periferias, Nielson Bezerra nos leva para dentro da história da Baixada Fluminense em livro que relaciona episódios importantes e imemoriais de resistência dos caboclos, africanos, indígenas tupinambás, malungos e sambaquieiros. Em Espírito das periferias, vemos que todos esses povos transmitem suas subjetividades a partir da lógica da partilha. Isso pode ser visto desde nos costumes e cultivo de relações entre vizinhos até na arquitetura, tão comunitária que inventa um novo modo de o IBGE chamar as periferias, favelas e comunidades urbanas.

Nielson é cria da Baixada e professor da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense. Também coordena a pós-graduação em Educação, Cultura e Comunicação nas Periferias na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e atua como pesquisador do Museu Vivo do São Bento. Além deste Espírito das periferias, é autor de A cor da Baixada: escravidão, liberdade e pós-Abolição no Recôncavo da Guanabara.

Mais pra ficar de olho 

Gessica Amorim

Gessica Amorim (Divulgação)

Cria do Sítio dos Nunes, no Sertão do Pajeú, Pernambuco, Gessica Amorim parte do lugar onde nasceu para desenvolver seu trabalho fotográfico e jornalístico, que andam juntos em exposições e reportagens feitas com o coletivo Acauã em veículos como Agência Pública e Marco Zero Conteúdo. Nessa reunião de fotos, ela alcança um pedaço da realidade e da essência desses lugares. Não se trata de um sertão seco, árido e pobre: o olhar de Gessica traz abundância e lucidez que permite ver a região em sua totalidade e diversidade. Aqui tem cheiro, tons, luz e lembranças.  

O racismo no banco dos réus

Baseada em casos reais, O racismo no banco dos réus, peça idealizada por Ana Flauzina, vem sendo encenada em escolas públicas do Distrito Federal simulando um julgamento a partir da história de Francisco, último africano escravizado que foi condenado à morte no Brasil. Acusado de matar seu senhor de engenho durante uma tentativa de fuga, Francisco tem sua história encenada e em seguida os estudantes formam suas opiniões e argumentos para decidir se ele é culpado ou inocente. 

(Divulgação)

Em interação com o público, o que se discute ali é se pessoas negras deveriam ter sido punidas por buscarem sua liberdade. A história de Francisco se passa no século 18 no estado de Alagoas. A montagem já passou pelas cidades-satélites de Taguatinga e Guará e vem aceitando convites para circular em escolas públicas e privadas em diálogo com a Lei 10.639, que institui o ensino obrigatório de história e cultura africana e afrobrasileira nas escolas durante todo o ano letivo. O elenco conta com Anna Clara, Hugo Rodrigues, Larissa Salgado, Marcos Davi e William Costa.

Editoria com apoio da Casa de Cultura do Parque

Em 2024, a Quatro Cinco Um estreia a editoria de cultura contemporânea, com com apoio da Casa da Cultura do Parque

Quem escreveu esse texto

Jefferson Barbosa

Jornalista, membro da Coalizão Negra por Direitos, Global Fellow da Fundação Ford, foi fundador dos coletivos PerifaConnection e Voz da Baixada e autor de A Mãe do mundo: vida e lutas de Mãe Beata de Yemanjá (Malê, 2023).