Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Gramática da justiça social

Adilson José Moreira mostra que a reconstrução da democracia brasileira passa por uma revolução da linguagem e da percepção racial

01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out

No cenário instável e de disputas da democracia em nosso país, Adilson Moreira nos oferece em Letramento racial: uma proposta de reconstrução da democracia brasileira uma reflexão indispensável. Ainda que eu esteja cada vez mais arisca em relação ao uso de palavras como “incontornável”, “fundamental” para descrever novos livros, não foi possível encontrar outro modo para falar sobre um título que garante aportes analíticos ainda necessários para construirmos um projeto de equidade, liberdade e justiça social e racial no Brasil. De fato, falar sobre racismo e relações raciais, sobre contribuições salutares para garantir justiça diante de mazelas que insistem em se reproduzir e retroalimentar, é algo incontornável. 

O jurista Adilson José Moreira (Divulgação)

Neste livro, as palavras do jurista ecoam como uma convocação urgente a um projeto de nação onde a consciência racial não seja apenas uma abstração filosófica, mas uma prática viva que sustenta o tecido social e cívico. Em tempos de crise, esse intelectual nos lembra que a democracia precisa, antes de mais nada, ser antidiscriminatória para ser verdadeiramente democrática, justa e robusta.

Ler Moreira é mergulhar em uma aula sobre princípios basilares da ideia de democracia, ainda que essa sempre tenha sido foco de disputas e tensões. Nesse sentido, cabem as perguntas: sob qual democracia vivemos? E qual democracia queremos? Ao tratar como princípio a solidariedade cívica, conceito que ele trabalha para lembrar que a cidadania só pode florescer onde há um reconhecimento mútuo da humanidade plena de cada indivíduo, Moreira nos convoca a refletir sobre questões que, apesar da aparência, não são fáceis de serem respondidas. Essa solidariedade invocada passa necessariamente pelo letramento racial, isto é, pela capacidade de compreender, falar e agir sobre as complexas dinâmicas de raça que estruturam a sociedade. Mas não sobre aprender a respeito do racismo. Moreira alarga as compreensões sobre letramento racial, ao posicioná-lo como “forma de transformação das práticas culturais e institucionais responsáveis pela reprodução de mecanismos discriminatórios”. E isso é importante para compreendermos que o letramento racial é também uma ação, uma postura ética ante o mundo e as desigualdades sistêmicas perpetuadas. Se a democracia é o palco onde todos atuamos como iguais, ela também deve ser o campo onde se corrigem desigualdades históricas, e para isso é preciso saber ler e interpretar o que nos rodeia, constituindo uma gramática racial.

Adilson Moreira nos oferece aqui uma proposta ousada e visionária de gramática racial, que nada mais é do que o domínio de um conjunto de códigos, signos e práticas que permitem identificar o racismo em suas manifestações mais óbvias e, especialmente, nas mais sutis, as estruturais. E, além disso, reposicionar o nosso modo de agir e atuar para que essas estruturas sejam dissecadas e derrubadas. Não é possível construir uma democracia verdadeiramente sólida quando grande parte da população não entende as regras subjacentes às relações raciais que moldam o Brasil e não se posiciona sobre isso, demandando transformações.

Uma obra que nos desafia a enxergar as engrenagens silenciosas que operam para manter as desigualdades

A democracia, como ele bem pontua, é mais do que o voto. Na proposta de Moreira, a democracia deve constituir-se também como uma vivência cotidiana da antidiscriminação — um compromisso que deve ir além da legislação e penetrar a consciência coletiva. Essa gramática, portanto, precisa estar no centro de qualquer projeto educacional, social e construtivo das instituições no país. Precisamos aprender a identificar as brechas, as sutilezas da linguagem que marginaliza, os olhares que julgam, as políticas que excluem. Só então poderemos falar de justiça social, pois, sem essa habilidade, a promessa democrática permanece capenga, carregando consigo a pesada herança de nossa colonização e das suas feridas não cicatrizadas.

Autoconhecimento

Moreira provoca ainda uma reflexão sobre a consciência racial. Esse conceito, longe de ser um simples reconhecimento de que o racismo existe, implica em um processo profundo de autoconhecimento, de identificação de privilégios e opressões e de ação. É chave para a libertação não apenas dos diretamente atingidos pelo racismo, mas de toda uma sociedade represada pela exclusão e pelo silenciamento histórico avançar e compreender-se multicultural. É parte da compreensão e exercício pleno de cidadania, pelo reconhecimento e convívio complementar e não excludente ou assimilado.

Ao ler Letramento racial, ficamos com a convicção de que a reconstrução da democracia brasileira passa por essa revolução da linguagem e da percepção racial. A democracia, em sua proposta, não se resume a um contrato social entre indivíduos, mas a um pacto de reconhecimento e responsabilidade mútua, ancorado em uma profunda solidariedade cívica que só será possível com um letramento racial robusto.

Essa é uma obra que nos desafia a olhar para dentro, a enxergar nossas falhas e as engrenagens que operam de forma silenciosa para manter as desigualdades. O letramento racial, como proposto por Adilson Moreira, não é uma habilidade que nasce espontaneamente, mas algo que se aprende, se constrói e, sobretudo, se pratica. Sem ele, a democracia não passa de um sonho distante, como uma peça cujo roteiro foi mal lido.

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Gramática da justiça social”

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