Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Tremer/não tremer

Cada pessoa é uma colagem, uma chávena remendada, se encontrou alguém que a colasse

02nov2023

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Cavalo dinheiro, de Pedro Costa. Ventura está internado no hospital, doente dos nervos, e deambula pelos pisos debaixo da terra. Treme as mãos. Caminha e treme. E, por vezes, o tremor pára, parece esquecido de ter de tremer as mãos.

Caminho pela cidade e relembro esse compasso das mãos de Ventura, entre tremer e deixar de tremer, entre ser Ventura e fazer de Ventura. Nova Iorque é, depois do filme, uma superfície sobre um mundo de canais subterrâneos, como o hospital onde Ventura está internado. O filme lança-me além da superfície, até que fica sob os pés. E vou caminhando, pensando no metrô e naquilo que possibilita: na gente que lá vejo e podia estar internada no hospital, gente que treme, pára de tremer.

Vai caindo um frio sobre tudo e muita gente dorme na rua. A cidade é dos que tremem. Ventura treme e pára e é quando penso que cada pessoa é uma colagem. Também eu sou feita de partes que (se) partiram, cada um é uma chávena remendada, se encontrou força ou alguém que a colasse.

Lembro-me de uma conversa com um vizinho de Ventura, meu amigo. Caminhávamos no Chiado, em Lisboa. Ele: “Isso tudo aqui, Chiado, Rossio, Baixa, esses prédios, cafés, esplanadas, faz-me impressão. Mete respeito.” Ela: “Respeito ou medo?” Ele: “(Silêncio) Podemos falar de outra coisa?”

Nada arde, apenas parece arder. Nada se perdeu, mas é como se tivesse perdido

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Na mão esquerda, uma queimadura. Tenho-a desde os dois anos, quando me queimei no ferro de engomar. Quando era menina, ocupava toda a superfície da mão. As crianças perguntavam o que era, um pouco enojadas. Eu contava a história. Nunca conheci a minha mão esquerda sem a queimadura. Esta não é uma cicatriz, mas parte da mão, a par dos cinco dedos, das unhas, da força, do movimento. “O que é que tens na mão?”: não a primeira pergunta de uma auto-análise, mas a primeira senha para o mundo exterior. 

Com os anos, à medida que a mão cresceu, a queimadura parece ter diminuído. Os estranhos também deixaram de perguntar, talvez por pudor. Esqueço-me da queimadura. De vez em quando, dou com ela. Observo-a, esticando os dedos. A princípio, parecia ter vida própria e deslocar-se em direcção à palma da mão. Costumava sonhar que um dia ela estaria no centro da palma da mão, de tanto se deslocar. Agora que a mão parou de crescer, a rotação da queimadura parou. Fixou-se logo abaixo do polegar. A sua forma oval lembra uma medalha. Foi desenhada pelo calor, mas é calada como espelho. Vendo bem, parece a cascata de fogo fictícia em Yosemite, provocada pela luz a certas horas. Nada arde, apenas parece arder. Nada se perdeu, mas é como se tivesse perdido.

3

Pedro Costa também faz justiça ao modo como as pessoas do filme são pessoas que (se) partiram. Filma-as em toda a dignidade, talvez as ame. Impressiona que possamos ver Ventura e Vitalina tão perto e tão prolongadamente sem sentir que os estamos a invadir. Há qualquer coisa neles à qual a câmara de Pedro Costa não chega e não quer chegar — e essa distância é o que nos permite, todavia, chegar tão perto de ambos. É espantoso como até Nova Iorque é diferente depois de olhar Ventura de perto. Ventura está por toda a parte, das Fontainhas à Bleecker Street. O seu hospital labiríntico são todas as cidades. 

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).