Detalhe de Lake George Reflection (1921), de Georgia O'Keeffe (Reprodução)

Onde Queremos Viver,

O perfume dos Natais passados

Apenas a música iguala o aroma na virtude de nos transportar para outros momentos no tempo

20dez2024 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 jan

Comprei um frasco de Paris, de Saint Laurent, apenas por ser o perfume que a minha mãe usava quando eu era criança. Usei-o num dia que passei sozinha e tive a impressão de passar o dia acompanhada. Perfumo-me — e sou transportada não para a minha infância, mas para a juventude da minha mãe. Lembro-me dela, nesse tempo, quando o futuro de toda a gente me parecia uma imensa possibilidade. (Há uns anos comprei Rive Gauche, perfume da minha avó, mas concluí que ainda não tenho idade para ele.)

Detalhe de Lake George Reflection (1921), de Georgia O’Keeffe (Reprodução)

Parece-me que estou a vê-la de novo, com saias travadas e grandes turbantes coloridos. Ou a maquilhar-se ao espelho, enquanto eu a observava, num quarto que exalava Paris e banho, espalhando perfume pelo corredor — e daí à sala.

Ela costuma gabar-se de deixar um rasto de perfume por onde quer que passe, “a dona Laurinda anda por perto, passou por aqui”.

Interessa-me a conversa com o perfume, o perfume como companhia na solidão, ou como interlocutor de pensamentos íntimos.

Noutra vida, gostava de ter sido perfumista. Apenas a música iguala o perfume na virtude de nos transportar para outros momentos no tempo, com a diferença de que o perfume nos transporta pelo tempo através dos outros. Recuamos ao passado e também às pessoas do passado, experimentando o cheiro que tinham.

Há quem se perfume antes de escrever porque ajuda a conjurar o estado propício à imaginação

Estou de novo na rua da Prata com Laurinda, a correr para apanhar o comboio no Cais do Sodré, no inverno de 1990, ou ao seu colo, no verão de 1992. Viajo no perfume aos anos em que nos vimos e aos anos em que não nos vimos.

Não gosto de usar o seu perfume na rua. Uso-o em casa, para gozar a impressão de que passámos a tarde à conversa. Agora que o cheiro da minha pele se tornou parecido com o da pele da minha mãe, o seu perfume transforma-me também um pouco nela, nos dias em que o uso.

Conheço mais do que uma pessoa que não se sente capaz de ir à rua sem se perfumar e há quem se perfume em casa, antes de começar a escrever, porque o perfume ajuda a conjurar o estado de espírito propício à imaginação. 

O aroma certo cria à nossa volta um halo de segurança, mais do que um motivo de atracção. Tenho preferências, que fui descobrindo, e faço misturas: flor de cerejeira, bergamota, baunilha, pêssego, groselha, peónia, figo, jasmim. A minha mãe é menos exigente: gosta de aromas doces que na sua pele perfumada pelo tabaco cheiram a caramelo e a rebuçado.

Mas não saber a que cheira o perfume de que gostamos mais é como gostar de olhar para as árvores sem saber como se chamam. Eu, que padeço deste mal urbano, componho o meu pomar de aromas e, como tenho uma inclinação floral, vou construindo a minha própria primavera, consoante às estações.

No Natal, o perfume antigo da minha mãe esgota. Se calhar, são as filhas que o oferecem às mães e às avós. Esta também é a época do ano dos aromas dos Natais passados. Não é a nostalgia que me faz querer cheirar como Laurinda. Mas o facto de que trocava todos os afazeres natalícios por uma ida à perfumaria com ela, a experimentar quantos perfumes havia, até não sermos capazes de os distinguir. 

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “O perfume dos Natais passados”

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