Onde Queremos Viver,
O perfume dos Natais passados
Apenas a música iguala o aroma na virtude de nos transportar para outros momentos no tempo
20dez2024 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 janComprei um frasco de Paris, de Saint Laurent, apenas por ser o perfume que a minha mãe usava quando eu era criança. Usei-o num dia que passei sozinha e tive a impressão de passar o dia acompanhada. Perfumo-me — e sou transportada não para a minha infância, mas para a juventude da minha mãe. Lembro-me dela, nesse tempo, quando o futuro de toda a gente me parecia uma imensa possibilidade. (Há uns anos comprei Rive Gauche, perfume da minha avó, mas concluí que ainda não tenho idade para ele.)
Parece-me que estou a vê-la de novo, com saias travadas e grandes turbantes coloridos. Ou a maquilhar-se ao espelho, enquanto eu a observava, num quarto que exalava Paris e banho, espalhando perfume pelo corredor — e daí à sala.
Ela costuma gabar-se de deixar um rasto de perfume por onde quer que passe, “a dona Laurinda anda por perto, passou por aqui”.
Interessa-me a conversa com o perfume, o perfume como companhia na solidão, ou como interlocutor de pensamentos íntimos.
Mais Lidas
Noutra vida, gostava de ter sido perfumista. Apenas a música iguala o perfume na virtude de nos transportar para outros momentos no tempo, com a diferença de que o perfume nos transporta pelo tempo através dos outros. Recuamos ao passado e também às pessoas do passado, experimentando o cheiro que tinham.
Há quem se perfume antes de escrever porque ajuda a conjurar o estado propício à imaginação
Estou de novo na rua da Prata com Laurinda, a correr para apanhar o comboio no Cais do Sodré, no inverno de 1990, ou ao seu colo, no verão de 1992. Viajo no perfume aos anos em que nos vimos e aos anos em que não nos vimos.
Não gosto de usar o seu perfume na rua. Uso-o em casa, para gozar a impressão de que passámos a tarde à conversa. Agora que o cheiro da minha pele se tornou parecido com o da pele da minha mãe, o seu perfume transforma-me também um pouco nela, nos dias em que o uso.
Conheço mais do que uma pessoa que não se sente capaz de ir à rua sem se perfumar e há quem se perfume em casa, antes de começar a escrever, porque o perfume ajuda a conjurar o estado de espírito propício à imaginação.
O aroma certo cria à nossa volta um halo de segurança, mais do que um motivo de atracção. Tenho preferências, que fui descobrindo, e faço misturas: flor de cerejeira, bergamota, baunilha, pêssego, groselha, peónia, figo, jasmim. A minha mãe é menos exigente: gosta de aromas doces que na sua pele perfumada pelo tabaco cheiram a caramelo e a rebuçado.
Mas não saber a que cheira o perfume de que gostamos mais é como gostar de olhar para as árvores sem saber como se chamam. Eu, que padeço deste mal urbano, componho o meu pomar de aromas e, como tenho uma inclinação floral, vou construindo a minha própria primavera, consoante às estações.
No Natal, o perfume antigo da minha mãe esgota. Se calhar, são as filhas que o oferecem às mães e às avós. Esta também é a época do ano dos aromas dos Natais passados. Não é a nostalgia que me faz querer cheirar como Laurinda. Mas o facto de que trocava todos os afazeres natalícios por uma ida à perfumaria com ela, a experimentar quantos perfumes havia, até não sermos capazes de os distinguir.
Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “O perfume dos Natais passados”
Chegou a hora de
fazer a sua assinatura
Já é assinante? Acesse sua conta.
Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.
Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva!
Entre para a nossa comunidade de leitores e contribua com o jornalismo independente de livros.
Porque você leu Onde Queremos Viver
Não estragar
Demos um passo e tentemos, se não salvar a Terra, pelo menos melhorar um pouco a vida dos outros
DEZEMBRO, 2024