Coluna

Renan Quinalha

Livros e Livres

Manifesto transexual

Livro do italiano Mario Mieli é libelo de geração radical que buscou conjugar, na teoria e na prática, libertação sexual com a luta pelo socialismo

01set2023 | Edição #73

Os debates sobre diversidade sexual guardam uma relação um tanto contraditória com a tradição marxista. De um lado, parte expressiva do marxismo, sobretudo o mais ortodoxo, deu pouca atenção à sexualidade, desqualificando-a como dimensão menor da vida social ou como uma agenda secundária e divisionista da luta de classes. Por outro, não foram poucas as agremiações e ativistas que reivindicavam o socialismo e deram contribuições importantes para movimentos LGBTQIA+ no último século.

Os pais fundadores do marxismo não estavam muito interessados no tema: Marx sequer o abordou diretamente; Engels apenas o tangenciou ao tratar da relação desigual entre os sexos no âmbito da família patriarcal.

A despeito de não estar no horizonte dos autores, é possível garimpar referências esparsas a práticas homossexuais de adversários políticos nas cartas trocadas entre ambos na década de 1860. Em algumas dessas correspondências, há comentários jocosos — e hoje homofóbicos — quando os fundadores do marxismo discutem suas diferenças em relação a Johann Baptist von Schweitzer, líder sindical da social-democracia alemã ligado a Ferdinand Lassalle.

Mieli assume que a emancipação só será possível com a libertação do desejo homoerótico

Na mesma linha, Engels se vale de tom irônico para desqualificar como “obscenidade” e “antinatural” uma obra que Marx lhe havia enviado, de Karl Heinrich Ulrichs. O jurista foi um dos precursores das campanhas por um tratamento científico à sexualidade e pela revogação do parágrafo 175 do Código Penal alemão, que criminalizava a relação sexual entre homens.

No entanto, apesar de os teóricos reproduzirem uma visão comum da época, seria equivocado condenar todo o marxismo como indelevelmente contaminado por um vício homofóbico de origem. Um olhar mais atento revela como essa já longeva tradição foi atravessada pelas reivindicações de liberdade sexual em diferentes contextos e países. Um exemplo disso é Por um comunismo transexual, do italiano Mario Mieli, publicado em 1977 e que chega finalmente aos leitores brasileiros.

O trabalho foi originalmente escrito para sua conclusão do curso de filosofia. Nos anos 70 e na altura dos seus vinte e poucos anos, o autor já ostentava um conhecimento sofisticado em torno das questões de gênero e sexualidade, de psicanálise e de marxismo.

Mieli é um legítimo representante da geração que é fruto do cruzamento entre o Maio francês de 1968 e a Revolta de Stonewall, nos Estados Unidos, em 1969. Ambos episódios demarcaram uma refundação do movimento LGBTQIA+, que foi abandonando a perspectiva assimilacionista e reformista para assumir uma postura radical de subverter as ordens social e sexual.

Uma onda de grupos LGBTQIA+ revolucionários e com afinidades com os marxismos da época emergiram em diversas partes do mundo. Na Itália, é criado o Fuori! (Fronte Unitario Omosessuale Rivoluzionario Italiano), do qual Mieli é um dos fundadores.


Por um comunismo transexual, do italiano Mario Mieli, publicado em 1977, finalmente chega ao Brasil

O livro pode ser lido como um autêntico manifesto de toda essa geração mais radical que buscou conjugar, na teoria e na prática, a libertação sexual com a luta pelo socialismo. Isso não significa dizer que possa ser reduzido a um panfleto dogmático. Ao contrário, há uma sofisticação conceitual e uma leitura provocativa sobre como marxismo e psicanálise podem — ou não — dar conta dos desafios no campo do gênero e da sexualidade.

Mieli dialoga direta e persistentemente com Freud e Marx, mas também com Jung, Reich e Ferenczi. Suas críticas à psicanálise, aliás, são implacáveis, ainda que ele assuma uma teoria do sujeito que passa por uma condição original e universal de bissexualidade, de hermafroditismo, de intersexualidade e de transexualidade. Todos esses termos aparecem com sentidos assemelhados, compondo a natureza de todos os seres humanos, que é corrompida (ou “educastrada”) pela repressão e tabus da sociedade: “a Norma heterossexual”.

Ressignificação fluida

Um dos pontos mais ousados de sua elaboração é precisamente a ressignificação fluida que ele propõe desses termos que, hoje, têm sentidos distintos e bem demarcados nas identidades contemporâneas. Apesar de sustentar uma naturalização dessa condição, Mieli se aproxima da não binariedade e do borrar de fronteiras identitárias que, décadas mais tarde, serão a espinha dorsal da teoria queer.

Um exemplo é o uso da palavra transexual, que estampa o título da edição em português (o título original é Elementi di critica omosessuale). Para o autor, o termo transexualidade “parece o mais adequado para expressar, ao mesmo tempo, a pluralidade de tendências do Eros e o hermafroditismo originário de cada indivíduo”.

Em vez de alocar no desvio a condição da homossexualidade ou da transexualidade, Mieli assume que a emancipação só será possível com a libertação total do desejo homoerótico carregado por todos. O que seria exceção se torna regra e o único caminho para a utopia da sociedade comunista.

O livro pode ser lido como um autêntico manifesto de toda essa geração mais radical que buscou conjugar, na teoria e na prática, a libertação sexual com a luta pelo socialismo

Vale perguntar por que demorou tanto para esse trabalho instigante ter chegado ao Brasil. Algumas hipóteses podem ser consideradas. O autor morreu cedo, se suicidando quando tinha só trinta anos e não tomou contato com os momentos da virada construcionista que assolou os estudos de gênero e sexualidade e que desembocaria, já na década de 90, na já referida teoria queer.

Foucault, um dos mais notáveis representantes teóricos e propulsores dessa onda do construcionismo, publicou seu hoje clássico História da sexualidade: a vontade de saber em 1976, quase simultaneamente à publicação da obra de Mieli. Talvez por se desalinhar e até se contrapor (mesmo sem ter havido diálogo entre ambos) à perspectiva foucaultiana, o trabalho do revolucionário italiano tenha ficado marginalizado.

De qualquer modo, em tempos de grandes empresas ostentando suas logomarcas pintadas de arco-íris, além das várias outras práticas de domesticação do desejo homossexual, é um ótimo momento para lermos e refletirmos a partir do legado radical e ainda pouco conhecido de Mieli.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.