Renan Quinalha
Livros e Livres
A Boulder em nós
Romance corajoso de Eva Baltasar detona ilusões românticas sobre o amor entre mulheres e enreda leitor em jogo manipulador de protagonista
01nov2024 • Atualizado em: 31out2024 | Edição #87 novA literatura sempre foi um mecanismo potente na criação e na reprodução de imagens de controle, conceito da socióloga Patricia Hill Collins para designar os regimes de visibilidade impostos sobretudo a grupos subalternizados. Algumas obras literárias, no entanto, conseguem contestar e mesmo colocar em xeque as molduras tradicionais que usamos de lente para observar esses mesmos grupos.
Exemplo dessa ruptura é Boulder, terceiro romance da catalã Eva Baltasar. Desde a frase estampada na epígrafe, “seu amor é uma coisa solitária”, até a última página, são detonadas impiedosamente as ilusões
românticas que nos acometem quando o assunto é o amor entre mulheres.
A protagonista rompe com a ideia de uma mulher passional, emotiva, dependente, acomodada aos limites da vida, vocacionada apenas ao trabalho do cuidado e com o desejo maior — e único — de ser mãe. O estereótipo do gênero feminino, uma imagem de controle persistente que há tantos séculos e com tantas violências tem sido cultivada em nossa cultura, cede lugar a outras mulheridades, menos alinhadas às normas e, portanto, mais provocadoras.
Zero primordial
Pouco sabemos da vida pregressa da protagonista, narradora de sua própria história. Só vemos que surge, nas primeiras linhas do livro, cansada da sua existência e ansiando por novos horizontes. Ela já aparece fugindo de um lugar fixo, mostra-se destituída de qualquer apego à terra firme. Sua existência logo vai se revelando em movimento, embarcada em um navio para uma viagem pelo mundo, sem destino ou prazo certos. Aliás, para ela, “o rumo mata a viagem”.
Na sua jornada de uma anulação da vida levada até então, ela se mostra “cansada de inventar currículos, de precisar falar e agir como se a vida fosse um relato, como se um arame dentro de mim me mantivesse ereta e constante”. No esvaziamento de si em busca da simplicidade, almeja atingir um “zero primordial”.
O mais perto que chega disso é o seu trabalho na cozinha da embarcação. Ela não ganha salário, trabalha de graça e sozinha em uma cozinha “pequena e enferrujada”. Por opção — e tudo nela parece ser por escolha — quase nunca desembarca do navio. “É o melhor trabalho que já tive”, diz, contrariando a impressão que passa das condições precárias em que vive.
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Renan Quinalha
Até aí, sua maior companhia é a própria solidão, só aplacada pela companhia dos utensílios e alimentos que prepara como ritual. Poucas conversas e raras interações com os marinheiros embarcados. A abstenção sexual é dolorida.
Faz mais de um ano que não tenho uma mulher nos meus braços. O corpo me insulta, exige de mim outro corpo para saciar a vontade monstruosa de tocar e excitar até fazer cuspir a pessoa, a pureza, o encanto.
Sua vida atinge outra coloração, contudo, quando desembarca em Chaitén para comprar provisões e se depara com Samsa, mulher também misteriosa que a arrebata no ato: “por um momento, tive consciência do magma instável sobre o qual o milagre dos oceanos e dos continentes flutua”.
Ela não romantiza em nada esse encontro. Se surpreende até com a ambiguidade de se apaixonar por uma sueca que recebe “um salário manchado de sangue de uma multinacional”. Pouco disso importa, contudo, diante do tesão desse primeiro encontro, do qual não consegue se separar “depois de tanta noite”. Trocam contatos e, “em menos de três luas”, voltam a se encontrar. Samsa a batiza de Boulder, nome que dá título ao livro e que lembra as rochas solitárias do sul da Patagônia. Ambas submergem em uma paixão e desejo avassaladores. Tem início uma lua de mel que parece durar e se intensificar para sempre.
A notícia de uma oportunidade de trabalho para Samsa em Reykjavík parece desestabilizar tudo. Ela comunica como fato consumado a decisão já tomada. Só resta a Boulder acompanhar e assistir ao sucesso de sua companheira. Um ressentimento vai emergindo e nenhum dinheiro parece ser suficiente para aplacar a falta de liberdade que essa escolha implica. Boulder, que tanto queria desbravar novos mundos, parece cada vez mais deslocada daquele que Samsa proporciona. Sua língua, seus amigos, seus costumes: tudo na Islândia parece insuportável.
Rompe-se com a imagem de controle de uma mulher que deveria se curvar à reprodução e ao cuidado
“O pior são seus filhos. Os islandeses são bestas biológicas, reprodutores […], formam clãs extensos”. Não demora para, em uma dinâmica de vida entre tesão e desarranjos, Samsa despertar para o desejo de engravidar. Entra em cena, então, o verdadeiro centro da história: a maternidade de um casal de lésbicas. Uma quer e a outra, que não quer, hesita, mas é rendida. Boulder adere ao sonho de Samsa, mas com um pé atrás, afinal, para a narradora, não deve haver concessão: “nenhum passo atrás: a maternidade é a tatuagem que te fixa e que numera a vida no seu braço, a mancha que inibe sua liberdade”.
A chegada da filha, Tinna, em vez de atenuar, só parece confirmar a repulsa de Boulder pela maternidade. Samsa e a filha enredam-se em uma relação simbiótica, uma equação na qual a narradora parece sobrar. Mais uma vez, rompe-se com a imagem de controle de uma mulher que deveria se curvar para a reprodução e para o cuidado.
Há muitas outras camadas e sutilezas que cabem ao leitor explorar. Mas fica evidente que estamos diante de um romance corajoso. Para além da ousadia de tratar de temas tão sensíveis de modo tão duro, Eva Baltasar consegue envolver em um jogo e uma linguagem que enreda quem a lê. Quando percebemos, estamos inteiramente tomados pela insensibilidade e convencidos pelas manipulações de
Boulder. Somos confrontados com a constatação de que temos todos um tanto dessa personagem que não queremos assumir em nós mesmos.
Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “A Boulder em nós”
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