Gravura a partir de figuras rupestres de Angola, Brasil e Portugal, de Jordi Burch

Deslembramentos,

noite nocturna & outras fábulas

ouço dizer que sucedeu um raro alinhamento de planetas: que coisa estranha de ouvir, vendo o quão desalinhado está o planeta

24jun2025 | Edição #95

fábula 1.

“se à noite fizer sol” é uma frase-insistência plantada num poema de conceição evaristo. começa assim: “se à noite fizer sol, / quebrarei minha casca-caramujo-corpo / e farei de meus poros crateras […]”. e segue, poema afora, para divagar em movimentos e sinuosidades.

se à noite fizer sol, e eu puder nadar: quero perder-me devagar na maré baixa. ou talvez sem nadar. / & buscar água: sendo tão nocturna a noite, há-de levar-me a algum lugar da infância. ou isso — ou isso e olhar as estrelas.

fábula 2.

ouço dizer que sucedeu, no nosso universo, um raro alinhamento de planetas. que coisa estranha de ouvir, vendo e sentindo o quão desalinhado está o planeta.

mas “houve alinhamento” ou terão vindo esses planetas em auxílio do nosso? estarão eles, nessa aparência tão arrumada, a oferecer colo a um planeta irmão-órfão?

fábula 3.

contributos para a definição de:

manobragem: dom de manobrar a língua como se manobra aquela onde se nasce (iemanjá nos dê o dom de não manobrar a língua alheia tão bem ao ponto de nos dizerem que ofendemos os “donos” na própria língua toda alheia).

línguamaternar: é dar o leite materno em mistura de uma nova língua-lugar. depois de nós. depois dos que nos antecederam. agora há, em tanto dos nossos sangues, uma outra e nova língua-lugar.

‘se à noite fizer sol’ é uma frase-insistência plantada num poema de conceição evaristo

a paz das línguas: como no caso de beijar; exemplo: beijo-te a ti na tua língua e tu em mim como eu souber e a mim me puder perceber a linguagem do amor na língua toda nova tipo recém conhecida por ti / ontem, amanhã / maior que a geografia das bandeiras: uma língua solta.

língua-toda-língua: quero que sejam minhas as línguas todas em todas as línguas. assim preludiaremos um novo modo de redefinir o futuro usando apenas a palavra (em) liberdade.

fábula 4.

“mais de terra e de fogo é o abraço / com que na carne queres reter-me jovem” é uma frase-plantar plantada num poema de natália correia.

impossível não lembrar do belíssimo “o sol nas noites e o luar nos dias”, de uma feiticeira portuguesa. começa assim: “de amor nada mais resta que um Outubro / e quanto mais amada mais desisto: / quanto mais tu me despes mais me cubro / e quanto mais me escondo mais me avisto”. e assim seguiam, ela e o poema, vida afora, nataliamente, a divagar em movimento e sinuosidade.

fábula 5.

(mas) não nos enganemos: as fábulas ainda fazem parte dos restos todos.

p.s. ao leitor brasileiro: procure a poesia e (por curiosidade cultural) pesquise em particular o poema “truca-truca” de natália correia.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #95 em junho de 2025. Com o título “noite nocturna & outras fábulas”

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