Djaimilia Pereira de Almeida
Onde queremos viver
Os meus mortos telefonam-me
Nestes dias de pandemia, chorando uma morte, sinto-me acompanhada de todos os que choram os seus
01mar2021 | Edição #43Os meus mortos telefonam-me. Chamam o meu nome do outro mundo. Estão aflitos para saber como vai a vida aqui. Uma noite destas, sonhei que me ligava o Quim. Disse-me: Djaimilia? Também o meu avô é essa voz que diz o meu nome do outro lado da linha, depois de morrer.
Cada linha, tenho que a ir buscar ao fundo do rio, onde cantam e estremecem. Sobrevêm após a apneia. Persistem os gestos, os dedos dos meus mortos, a sua voz quando me deitavam, o seu chamarem o meu nome, como se me perguntassem se ainda vivo, que notícias há, que é feito. Por aqui, cada frase, um mergulho; estão todas no fundo do rio à minha espera.
Morrerem: aprender a escrever. Sinto-me de novo na cadeira da escola. Cada palavra, cada linha, uma montanha. Morreu com eles só o seu corpo.
No mês passado, recordei “O silêncio e o lume”, de Raul Brandão, um Natal à lareira rodeado dos mortos da sua vida. Entendo agora que escrever é manter essas brasas acesas vida fora, brasas que nos aquecem. Escrever por quê?, perguntam-me muito. Por quê, se todos os ouvidos morreram? Só se escreve para ouvidos que estão debaixo da terra, sob os nossos pés.
Qual a última parte dos nossos queridos antepassados a desabitar-nos? No meu caso, são sempre as suas mãos. Não fossem elas e não teria quem me ensinasse a nadar.
Dor
Nestes dias de pandemia, chorando uma morte, sinto-me acompanhada de todos os que choram os seus pelo mundo todo. Uma parte da sua dor é a minha dor, uma parte da minha dor é a sua dor. Conheci por telefone um enfermeiro, Joel, anjo bondoso das boas e das más notícias, a voz mais branda e compassiva na tempestade.
Imaginei Joel na enfermaria onde trabalha: como podia ele, no hospital apinhado, caótico, manter a calma e a bondade? Quantos o fariam, e a troco de quê? Seria eu capaz do mesmo?
Nas margens do rio Sado, a corrente devolveu-me uma lágrima sob a luz do primeiro dia de sol de fevereiro. O leito do rio paira sobre ele um vapor rente e sem contornos, tocando de geada o arvoredo raso, o cais de embarque, a estação romana, o que era antes: as torres demolidas, o meu pai de tronco nu numa tarde de julho longínqua, levando-me pela mão; a duna, o relvado, o pinhal, o loendro, o fóssil, a ruína, o osso de cavalo-marinho que a menina desfaz nos dedos. O ferry segue na bruma, verde-vivo e vazio.
Outras colunas de
Djaimilia Pereira de Almeida
As linhas progridem e vai sendo mais fácil apanhar a moeda no fundo do rio: ou ela não brilha tanto ou fui eu que lhe apanhei o jeito.
Parece haver no alto uma central telefónica onde fazem fila para ligar cá para baixo os que partiram
Quantos mortos aguentaremos? Que é da nossa vida sem eles?
As gaivotas voam e passam. Vizinhos novos ocupam as casas da frente. A nonagenária amiga oferece-me um raminho de flores, fatias de bolo, a casa no lugar de sempre, tâmaras, ameixas secas, chá de camomila.
Sobram as fotografias do meu querido pai em pequenino: a brincar num balouço, na praia com os irmãos, a fazer um castelo de areia.
Toco-lhes: que era ele antes da dor, do medo, da besta da alegria da vida o avariar? Que somos nós, antes disso tudo, quando brincamos na areia?
Restam as suas mãos, mãos minhas, vejo-os nos meus gestos: nos olhares cansados, na frustração. Ou no que tenho de gracioso, depende dos dias.
Fechados em casa, a primavera insinua-se nos telhados, sobre o rio. Parece haver no alto uma central telefónica onde fazem fila para ligar cá para baixo os que partiram, possam as nossas linhas não estar ocupadas.
Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.