Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Nós e as nossas sombras

A rua recebeu o ano novo deserta, mas a presença humana estava latente

01fev2021 | Edição #42

Quase à meia-noite, abrimos a janela. As luzes estavam quase todas acesas, as ruas vazias. Não contámos os segundos que faltavam, não foi preciso. As caras começaram a aparecer atrás dos vidros, à procura de outras caras. Os foguetes começaram por vir da serra e, depois, de mais longe, perto do castelo. Começaram tímidos, episódicos e eufóricos e, pouco a pouco, foram ficando mais frequentes, nervosos. Saímos à varanda. A fachada do nosso prédio acendeu-se, olhou as outras fachadas. 

A energia das pessoas dentro das casas transpirou para a rua e os próprios prédios revelaram-se vivos, por mais que os festejos tivessem sido cancelados

Dentro das casas, bebiam, e as conversas aproximaram-se das janelas à procura de outras conversas. Risos, vivas, palmas, votos. A rua recebeu o ano novo deserta, mas a presença humana estava latente no interior dos edifícios, que, à meia-noite, vibraram. Parecia que sim, mas não estamos sozinhos. A energia das pessoas dentro das casas transpirou para a rua e os próprios prédios revelaram-se vivos, por mais que os festejos tivessem sido cancelados. Estamos vivos, não estamos sozinhos. A vista carregou essa tensão, como um campo magnético. O frio não abafou a onda de electricidade, que se susteve vários minutos.

Colunista da Quatro Cinco Um ganha Prêmio Oceanos

Este Natal, li “O silêncio e o lume”, de Raul Brandão, do livro Memórias, tomo 2º (Relógio D’Água, 1999). O texto foi escrito num Natal há quase cem anos, em 1924, passado na aldeia, à lareira, com a mulher e as sombras de ambos.

“Querida: estamos sozinhos à mesa nesta noite infinita em que a chuva cai lá fora com um ruído monótono de choro. Estamos sós nesta noite de saudade e nunca foi maior a nossa companhia, porque cada vez me sinto mais perto dos mortos. Rodeiam-nos, chegam-se para mim e sentam-se ao nosso lume. São legião… Mais perto, que eu faço uma labareda que nos aqueça a todos!”

Li-o a uma mesa onde me encontrei na companhia da minha vida, nós e as nossas sombras. Duas pessoas não chegam, ainda que baste apenas uma, pensei, a vida de uma, no instante em que a intuição da presença dos outros nos prédios em redor da minha casa, na noite da passagem de ano, me confirmou que estou viva, em 2021. Raul Brandão escreve, no Tomo 1º das Memórias

“Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquela laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no Inverno em que secou.”

Janeiro

Se o andar do tempo parece que se avariou, é andar na rua, procurar os olhos dos outros, senti-los mais perto, aquilo que me mantém viva. Busco o movimento, as cores, as suas vozes, ainda que de raspão. O saber da sua presença no interior das casas da vizinhança é a aparência do florir da laranjeira no gelo do inverno. Por mais livros doutro tempo que se leiam, custa a crer que também este janeiro dará lugar a outros. 

Os factos vão-se desvanecidos, mas também nos transfiguram. Vamo-nos desvanecidos com eles, morremos com eles. O que faz uma casa, a vida, é ainda a companhia daqueles que não conhecemos, cujos nomes não sabemos. E as casas nas quais nunca entraremos, que nos chegam quando abrimos a nossa janela. Precisamos deles, delas, para nos confirmarem que estamos aqui — e que isso vale a pena.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.