Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Navios e asas

O espírito não coincide com um segredo escondido por mim na página onde nada escondi

01abr2021 | Edição #44

A mão sobre a folha. O sol na página. A sombra dos dedos. O céu azul sobre o casario. De repente, as estações salvam-me com o seu relógio certo. Um pouco mais de escuro e caio. O rio não sabe nada das nossas dores nem das nossas alegrias. E esconde mil histórias que nunca contou a ninguém e não nos contará. Não fosse o sol sobre as mãos, as casas, a folha, a cabeça, e isto era só um poço. Assim, só me arrelia a abelha que não pára de dançar à volta da porta. A alegria é um merecimento que nos encontra enquanto o buscamos sem o encontrar. O que é o país de uma pessoa? Outras pessoas. A esperança de se ser acolhido por alguém, de que haja alguém atrás da porta, o instante em que ainda não sabemos se ela vai ser aberta depois de termos batido. Sonho agora, à janela, que a Primavera pudesse chegar ao mesmo tempo a todos os lugares e todos pudessem ver o que vejo daqui: casas e água, navios e asas, mesmo que seja improvável que a nossa redescoberta da alegria possa bater em todos os corações ao mesmo tempo. 

Sei desenhar um país: dois olhos, uma boca, duas pernas, dois braços, uma cabeça, duas mãos. Existe um paralelo, percebo agora, entre imaginarmo-nos sozinhos e nos imaginarmos amputados para sempre. Escrever não é uma companhia sem rosto, mas na solidão, ainda que imaginada, não existe lugar ao prazer das coisas que amamos fazer nem ao abandono a que elas nos obrigam.

Revelação

É a continuidade do trabalho que revela o espírito, afirma Gadamer, no seu comentário a Hegel. Reconheço estas palavras, pensando no que vou escrevendo, como uma promessa ou um desejo. Se a continuidade é reveladora, o tempo e a persistência são as matérias exigidas pela revelação do espírito. Não basta fazer uma vez, há que ir fazendo. 

O espírito revelar-se-á da acumulação da voz e da tonalidade, na reincidência dos padrões, das obsessões e dos motivos, no desenho de um vocabulário próprio, na repetição dos gestos e das modulações, como um carácter é revelado pela passagem dos anos nos actos, nos ditos, nas omissões, nas repetições.

Gostava de saber escrever sem expor o desejo dessa revelação futura do espírito, sem que o desejo por essa forma retroactiva da perenidade fosse mostrado. Escrever sem revelar o desejo de duração que se esconde atrás do que digo e que revela mais do medo da irrelevância de cada palavra do que expressa qualquer promessa de longevidade. 

Mas não sei como esconder os meus segredos não ditos da página, os que vão mesmo quando os não pronuncio. É desse não dito que vai no que dizemos, nesse segredo que julgamos não ter contado, que o espírito emanará, após muitas linhas, e não nas coisas que dissemos. 

O espírito não coincide com um segredo escondido por mim na página onde nada escondi. Ele está na página como a casca está na árvore, ele é a árvore — a página. Não é a nossa vida vivida, os temores profundos, a nossa cara nua; o que os textos revelam como duas coisas distintas se revelam mutuamente. Não é a página aquilo que depõe sobre a nossa vida, como uma testemunha depõe em tribunal. A página é a nossa vida vivida. Não há esconderijo possível dentro de um livro. Num livro, não há tocas. Escrevo, fazendo uma toca, e ela só conta de que nela me escondi e daquilo que é feita. Difere do nosso passado, ao qual, mesmo nós, só acedemos quando o merecemos. E, ao mesmo tempo, ninguém desvenda o desenho desse abrigo. Abandono-me enquanto escrevo, abandono os outros — abandono alguém. Sozinhos, não temos a quem regressar, de quem sentir falta, por quem temer. Voltarmos a saber que temos um lugar (esquecido por instantes), sentir o hálito do nosso país, devolve-nos ao nosso lugar no mundo mesmo quando nos julgávamos perdidos, mas só como um navio ou um pássaro, subitamente no enquadramento da janela, sem sermos nós a conduzi-lo.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.