Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Catar borbotos

O trabalho de escrever livros obriga a perceber de que modo posso ajudá-los a me ajudarem

01jan2021 | Edição #41 jan.2021

Começo o ano novo a catar borbotos no livro escrito no ano que acaba. O livro a meio cose um ano ao outro. Cato rimas, repetições, erros, lapsos, remato pontos, coso botões por cima de nódoas sem solução, faço bainhas. Mas não sou bordadeira nem o meu escritório casa de arranjos de costura. Sou mais a garça-boieira que cata carraças no lombo do boi, a mulher que cata borbotos na camisola do marido a meio de uma conversa com outras pessoas, a mãe que ajeita o cabelo do filho enquanto ele lhe conta como foi o dia de escola.

Os textos não são tecidos, mas pessoas, seres que amamos. Revemo-los como quem se preocupa com a aparência dos seus entes queridos, com os olhos de quem lhes encontra os defeitos que mais ninguém encontra. Vendo-os sair porta fora, com a camisola cheia dos borbotos que não apanhei a tempo, abandono-os e esqueço-os. A vida que traziam à minha vida era uma miopia, questão de vê-los, lê-los, mal ao perto. Abandonados, o que parecera remate é esgarçamento, troquei as cores das linhas, deixei a bainha descaída.

Cada livro cruza-se comigo para me ajudar em alguma coisa. Vejo-os como balsas lançadas a um náufrago e à bordadeira como mulher afogada. O trabalho de os escrever obriga a perceber por que se cruzaram no meu caminho e de que modo posso ajudá-los a me ajudarem, ajudar-me a receber a sua ajuda, apesar do meu orgulho em reconhecer que preciso dela.

Amar as perguntas como quartos fechados, recomendou Rilke ao jovem Kappus, perguntas a que não sabemos responder como livros escritos em línguas que não sabemos ler. Amar aquilo que nos está vedado na medida em que nos está vedado amar as vedações.

Perdoar

O fio das perguntas sem resposta é o fio que me cose, pergunta infinita que me engasga. Tento que não me sufoque, tento não entrar em pânico, lembro-me do casal que vi na televisão, pais de um rapaz perdido para a droga e para o crime, incapazes de o perdoar.

Eram duas almas desfeitas. Ela, em cadeira de rodas, depois de um acidente vascular cerebral, ele, mastigado pela vida. “Vivo para ela”, contava ele, de lágrimas nos olhos. E ela, que não andava e precisava da ajuda dele para tudo, olhava-o como uma mãe olha para o filho enquanto ele presta uma prova e catava-lhe os borbotos da camisola à medida que ele ia falando sobre o filho de ambos, “levou-nos tudo, roubou-nos o dinheiro, deixou-nos sem nada, perdoar é difícil, custa muito”. 

Deixar que os livros me ajudem é parecido com deixar-me ser ajudada por outras pessoas. Incitam-me ao perdão. Chegam para me ensinarem a perdoar-me

Na pasmaceira da tarde, diante da audiência do canal generalista, aleijada, o orgulho da mulher estava nesse gesto de dedos, e ia assentindo com a cabeça ao que ele dizia, atrapalhada quando se explicava, nervosa com as luzes do estúdio. “Eu sei que perdoar é difícil, mas agora está tudo perdoado, não é?”, rematou a apresentadora com um sorriso. Ele olhou para ela e, sabendo que mentiam, responderam que sim.

Ajuda

Deixar que os livros me ajudem é parecido com deixar-me ser ajudada por outras pessoas. Incitam-me ao perdão. Chegam à minha vida para, de formas sempre novas, me ensinarem a perdoar-me. Cosem os anos uns aos outros como eu os coso. Não me julgam. Ensinam-me a não julgar os outros. Os borbotos que neles cato são borbotos na camisola que sou, tal como o bordado que teço através deles é a vida pela qual respondo.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.