Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O avesso do retrato

Ao reunir seis cronistas clássicos, ‘Os sabiás da crônica’ aponta ainda para uma história do gênero livre de nostalgia e mistificações do carioquismo caricato

09dez2021 | Edição #52

As trinta e poucas páginas iniciais de Os sabiás da crônica são tão boas quanto os noventa textos reunidos na antologia publicada pela Autêntica. Nelas, Augusto Massi propõe traçar um “quadro histórico e cultural” do momento de consagração da crônica, quando o gênero literário nascido “menor”, marcado pela dispersão e pela fugacidade da imprensa, se encaminha para a ordem e a placidez do livro. E, encadernado, candidata-se à perenidade idealizada – ainda que superestimada –  da chamada alta literatura. 

O ponto de partida é a foto oficial de lançamento da editora Sabiá, criada em 1967 no Rio de Janeiro. Rubem Braga e Vinicius de Moraes, os mais velhos, posam sentados, cercados por Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Sérgio Porto e José Carlos Oliveira. Representantes de três gerações, estão todos de terno, entre as árvores da cobertura de Braga em Ipanema. Por trás da câmera, Paulo Garcez, fotógrafo genial, à vontade na Vogue e no Pasquim. Por trás do livro, o desejo do poeta e professor de literatura da USP de fazer um “retrato de grupo” que não seja simples metáfora ou mera facilidade retórica.

Nesse instantâneo ensaístico não há, portanto, lugar para as ilações tolas e mistificadoras de uma “era de ouro” do cronismo e do Rio de Janeiro. Uma vez que talento não dá em amendoeira e maresia não carrega inspiração, o que importa é como, principalmente depois de 1945, com o fim da Segunda Guerra e do Estado Novo, o Rio tem seu momento mais fulgurante como “capital da crônica”.

A esotérica “vocação” da cidade ou sua inata superioridade, platitudes exauridas pelo carioquismo caricato e com fins lucrativos, dão lugar à articulação entre poder econômico, político e simbólico. É a partir desses eixos que se tece uma complexa rede de relacionamentos que mobiliza tanto afinidades eletivas (“os movimentos construtivos da amizade”) quanto relações políticas (“o emaranhado ideológico era caviloso”). O universo da crônica, que se descortina a partir desse ponto de vista, é resumido com precisão por Massi: “a etnografia sentimental dos bairros e dos bares, os diálogos com a música e com o cinema, os perfis de artistas e amigos, o versiprosa, as histórias de passarinho, o futebol, os tipos urbanos”.

Bastidores da crônica

Pelo que traz de circunstancial, Os sabiás da crônica é uma cápsula de tempo, da reunião de vestígios possíveis de um mundo perdido. Afinal, conforme observa Massi, os autores já se foram, como desapareceram os jornais, revistas e editoras que os publicaram e o Rio de Janeiro em que viveram intensamente. Pode-se, portanto, percorrer suas 352 páginas numa viagem nostálgica. Não habituado a lamentar a perda do que não tive, vejo na antologia uma porta entreaberta para seus bastidores. 

Para começo de conversa, não viviam os cronistas no berço esplêndido que seus textos sugeriam. O hedonismo-ostentação, com discretas notas de melancolia a depender da persona que o escriba inventou para si, talvez fosse mais frequente nas laudas do que nas folhinhas do calendário. Ainda que, como observa Massi, seja impossível estabelecer “um panorama profissional minimamente confiável” do grupo por causa dos intensos movimentos profissionais, é certo que quase todos ali se viravam como podiam: tinham pelo menos dois empregos, vez por outra penduravam-se em sinecuras e, a partir de simpatias ou rivalidades, atavam e desmanchavam os nós que lhes garantiam o sustento e influíam naquilo que escreviam.

Por isso, os artífices da crônica são tanto seus autores como aqueles que possibilitavam seu exercício – sem esquecer que a própria antologia nasce de uma ideia da editora Maria Amélia Mello. Rubem Braga, por exemplo, jogava nas duas posições, importante como o único cronista “puro”, que não fazia do gênero uma linha auxiliar da carreira literária, e de forma tão relevante como editor de periódicos – sob seu comando, o semanário Comício fez história nas 23 edições que circularam em 1952 – ou como sócio, com Sabino, da Editora do Autor e, em seguida, da Sabiá. 

Da densa pesquisa documental de Massi, emerge como herói pouco óbvio Lúcio Rangel (1914-79), cuja posteridade ficou marcada por promover o primeiro encontro entre Vinicius e Tom Jobim. Apesar de justificar, em si, seu lugar na história, essa circunstância é insuficiente para aquilatar sua importância como um elo perdido entre o modernismo histórico e as gerações que o sucederam – notadamente a de cronistas. 

No mapa mental de Lúcio, Flaubert, Pixinguinha e Louis Armstrong convergiam para uma encruzilhada em que não era necessário escolher um único caminho. A partir do comando de três revistas – Revista Acadêmica, Sombra e Revista da Música Popular – promoveu o encontro de veteranos e estreantes, eruditos e populares, cariocas e paulistas. O purismo, sua marca como crítico musical, não se aplicava a uma intensa atividade intelectual marcada pelas misturas e associações inesperadas. 

Na certeza de que o retrato se faz também por seu avesso, me chama a atenção a primeira da sequência de oito fotografias que abre Os sabiás da crônica, flagrantes de Garcez que formam uma espécie de making of da foto oficial. Nela, os seis estão de pé e vê-se ao fundo não o horizonte distante do mar de Ipanema, mas uma muralha de barracos do morro do Cantagalo. Hoje, ergue-se ao lado do prédio da Barão da Torre o Complexo Rubem Braga, com duas torres de elevadores que levam à comunidade. Mas naquela tarde de verão de 1967, como o provam os cronistas ali reunidos, ainda era possível ignorar a favela – ou, no máximo, tratá-la com condescendência. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.