Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Minha vida vai mudar

Estamos enterrados em imagens noticiosas que, num certo ponto, colidem com as imagens da nossa vida

01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

Todos os Outonos regresso a Ma Vie va changer [Minha vida vai mudar] (Ghost Editions, 2015), o fotolivro da portuguesa Patrícia Almeida e do francês David-Alexandre Guéniot. Comovo-me sempre, mal o começo a folhear. “Durante três anos (2011-13), coleccionámos recortes de jornal. A ‘Primavera Árabe’ no seu auge; a chegada da Troika (FMI, BCE, UE) à Grécia, a Portugal e à Irlanda; o terramoto e o desastre nuclear no Japão; e, um pouco por toda parte, na Europa e nos Estados Unidos da América, os movimentos de cidadãos contra as políticas de austeridade a favor do resgate do sistema financeiro”, explicam os autores, no texto de apresentação do livro.

Folheio o álbum. É de novo o Outono de 2012 na sala da casa onde então vivíamos. Todos os dias são cinzentos, o bolor espreita nas paredes das divisões, mal podemos abrir as janelas. Uma luz branca reflecte-se em todas as superfícies. Os recortes de imprensa levam-me ao tempo que vivemos juntos. “Longe destes acontecimentos mundiais, embora afectada por eles, uma família, a nossa, um álbum de fotografias. O Gustavo tem cinco, seis, sete anos de idade. Aprende a ler e a escrever. O seu amigo, Gaspar, tem nove, dez, onze. O seu corpo entra na puberdade. A doença regressa, vai embora e regressa de novo, sempre no Verão, rodeados de amigos.”

Não creio que se tenha escrito, filmado ou fotografado os anos da Troika em Portugal como faz Ma Vie va changer. As manchetes de jornal, os instantâneos das brincadeiras dos miúdos, as partes de corpos e o picotado da História reconduzem-me a outra família, a minha, comum a tantas naqueles anos: os almoços de despedida pelos que emigravam logo após serem pais, ou logo depois de casarem, casamentos que não resistiram, amizades rompidas, ilusões de uma vida inteira goradas, a doença, as dívidas, as casas perdidas, as contas penhoradas, as sobras distribuídas pela caridade, os biscates, a deformação dos corpos, as tatuagens enquanto insurreição, a entrada derrotada nas lojas de penhores, a calçada peganhenta, os despejos.

Não me lembro de nenhum Verão naqueles anos, foi para sempre Outono. Mesmo assim, fomos sorrindo, à semelhança da família de Ma Vie va changer. É a esse Outono que esse livro me transporta, dando conta da percepção que uma mulher e um homem têm do seu tempo, fazendo-me chorar entre sorrisos, levando-me a pensar como estarão hoje Gustavo e o seu amigo, rapazes que desconheço. O álbum dessa família é um álbum da minha família. Não se pode pedir mais nada a um livro.

Futuro como presente

“Os bancos são como o cancro”, diz um cartaz durante o protesto “Occupy Wall Street”, em Nova York, em 2011 — continuam os autores —, “uma metáfora brutal alastrando no corpo de alguém. Hesitamos entre ficar em Portugal e tentar a nossa sorte em França. Enquanto um de nós tiver um emprego, ficamos. O livro é um fac-símile de um álbum de fotografias dedicado ao nosso filho e ao seu amigo, feito para ser aberto em 2030. Oferece uma viagem através do tempo, de um futuro incerto a um passado (o nosso presente) no qual as fotografias da nossa família colidem com aquelas que retiramos de jornais.”

Detive-me nesta afirmação final dos autores. Estamos enterrados em imagens noticiosas que, num certo ponto, colidem com as imagens da nossa vida. Não é apenas quando a vida pessoal é atropelada pelo mundo exterior, mas também quando a vertigem noticiosa engole e regurgita as nossas histórias e percepções. Ao regressar a Ma Vie va changer, não sinto que regresse a um álbum de família antigo. Observo as caras, tiques e trejeitos dos protagonistas políticos daquele tempo e a sua concomitância com o drama e a alegria soluçada de uma única família enquanto exemplos do encontro da vida individual com a impiedade do mundo — da forma como somos ou não arrasados enquanto lhe tentamos fazer frente.

Na vida dos que me eram próximos e na minha, tal como na da família de Ma Vie va changer, o drama e os soluços de alegria dos anos da Troika representaram uma agonia paralela: um vagão de comboio desembestado arrombou a porta das nossas casas e colheu-nos. Talvez por isso não seja capaz de voltar a Ma Vie va changer sem me comover. Os anos passaram, os próximos refizeram-se, mas instalou-se uma fractura, de que este livro me recorda. Há um antes e um depois, um corpo prévio e um corpo posterior àqueles anos sombrios.

Alguém próximo

A vida regressou e, contudo, restou uma ferida. Somos, talvez, perenemente convalescentes, mortos por dentro, por mais que tenhamos saído do desemprego, mudado de casa, regressado a Portugal, casado de novo, tido filhos, ganhado alento, sobrevivido. Ou, nos instantes em que a alegria assoma nesses momentos de festa, em família, nus diante uns dos outros, entre gargalhadas e travessas entretanto vazias. A partir do Outono de 2019, reencontro Ma Vie va changer como sua destinatária acidental. Não passaram muitos anos, mas a mulher que sou, ao encontrar o livro vindo do passado, é uma pessoa póstuma, fracturada.

Nunca me cruzei com os autores desse livro. Soube da morte de Patrícia Almeida, sua coautora, pelos jornais, em 2017. Li a notícia como li o seu álbum, sentindo que conhecera Patrícia e testemunhava então a morte de alguém próximo. Nesse momento terrível, deu-se um duplo reconhecimento: o de que o seu álbum tornado público a tornava minha família, da mesma forma que os anónimos em protesto e os protagonistas políticos da crise recente são, em Ma Vie va changer, revelados página a página a par uns dos outros, para nosso alento e redenção. 

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.