Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Utopias inteligentes

As novas tecnologias pretendem substituir a democracia por algoritmos, mas as cidades podem reconquistar sua autonomia

01mar2020 | Edição #31 mar.2020

Muitas das utopias dos nossos tempos estão cristalizadas sob a forma de cidades. Se fizermos um rápido recenseamento, encontraremos inúmeras cidades imaginadas — da literatura à história da filosofia. No entanto, a etimologia de “utopia” aponta para um contrassenso: a conjunção de ou e tópos marca justamente a negação do lugar, a inexistência geográfica. Retratar o horizonte normativo de uma vida idealizada desafia o sentido originário dessas palavras. Não é à toa que a referência seja a cidades — e não a países, a aldeias ou ao planeta. A cidade é a forma de vida política por excelência. Imaginar sua melhor versão pressupõe um modelo de sociedade e de política que nos seja próximo e tangível.

Cada um de nós é capaz de projetar uma cidade ideal. Para alguns, a topografia será determinante; para outros, a interação entre as pessoas estará em primeiro plano. Quando caminhamos pelas ruas, usamos o transporte público ou ficamos ilhados em engarrafamentos, pensamos que a cidade poderia ser melhor. Calçadas poderiam ser amplas e acessíveis a todos, ônibus e trens poderiam ser mais amigáveis e eficientes, horas no trânsito poderiam ser evitadas. Quem vive na cidade analisa o que existe a partir do que poderia vir a ser. A utopia oferece um ponto de apoio para a crítica.

Nos últimos tempos, boa parte dos pensamentos utópicos em torno das cidades pode ser agrupada sob um rótulo: “cidade inteligente” ou, em inglês, smart city. Todo rótulo bem-sucedido funciona como um guarda-chuva que abarca uma grande pluralidade de sentidos, muitos deles ambíguos ou contraditórios. O livro de Evgeny Morozov e Francesca Bria é uma leitura fundamental para compreender a genealogia desses sentidos e, sobretudo, o que está em jogo para além das palavras que compõem essa expressão.

Smart é um adjetivo que vem do mundo da tecnologia e qualifica não só telefones e outras máquinas, mas também um modo de pensar. A constelação de significados vinculados a smart está em rápida expansão: designa usos mais eficientes e integrados, mas também qualquer coisa sexy e antenada, flexível e adaptável. A tecnologia está no centro de irradiação da inteligência. O mundo das coisas é  transformado para otimizar recursos e mudar comportamentos.

Smart city é um mercado

Se smart é claramente polissêmico, não parece haver muitas dúvidas em relação a city. No entanto, Morozov e Bria afirmam que o componente “cidade” é ainda mais vago e ambíguo. Cidade pode tanto indicar as administrações locais como o espaço urbano construído, ou mesmo as pessoas que vivem nas cidades. Diante dessa multiplicidade de significados, o caminho adotado pelos autores é o da reconstrução da gênese do conceito. E, na origem, smart city é um termo não só cunhado, como registrado por uma grande empresa de tecnologia, a ibm. O início da discussão sobre cidades inteligentes está, portanto, atrelado a uma espécie de storytelling corporativo que culmina com a reorientação da estratégia de parte das big techs para construir o que seria o apogeu lógico da tecnologia no espaço urbano.

A utopia nas entrelinhas da cidade inteligente é bastante clara: quem não gostaria de viver em uma cidade em que tudo funciona? Não é por outra razão que smart city é mais que um slogan — é um mercado. Empresas oferecem a instalação de “serviços  inteligentes”: redes elétricas, mecanismos de controle e integração de sistemas. O fio condutor dos novos serviços é o uso massivo de dados, muitos dos quais não eram sequer coletados e registrados há bem pouco tempo.

O mercado das cidades inteligentes é composto de soluções de tecnologia avançada para otimizar a produção de riquezas, usar ativos de maneira mais eficiente e prescrever condutas. Há rankings e tabelas de competitividade para medir a inteligência das cidades e, assim, direcionar investimentos. Os exemplos são os mais variados. Uso de sensores para otimizar a coleta de lixo, integração dos sistemas de iluminação da cidade para adaptar o consumo de energia aos diferentes momentos de luz do dia, uso de técnicas de reconhecimento facial em estações e trens de metrô para aumentar a vigilância. A técnica se impõe como o caminho necessário para reduzir as incertezas e controlar o aleatório.

As críticas de Morozov e Bria são de várias ordens. Em primeiro lugar, eles identificam as estratégias da smart city com a privatização em grande escala de serviços públicos municipais. A novidade não seria a privatização em si, mas a entrega do controle e das capacidades estatísticas e computacionais para agentes privados, com tecnologias proprietárias não abertas. Assim, as cidades podem se tornar reféns da própria solução inteligente à medida que dados (de transporte, circulação, moradia, preço da terra) são armazenados, processados e vendidos por empresas. A ausência de controle das informações gera dependência — e a garantia de que as cidades serão enganadas por seus fornecedores, que podem contar só uma parte da história.

Em segundo lugar, um dos pilares das estratégias atreladas à smart city é a vigilância. Dados pessoais de centenas de milhares de cidadãos são coletados e utilizados por empresas. Os potenciais usos desses dados são explosivos, especialmente quando vinculados a técnicas de reconhecimento facial: identificar pessoas na multidão ou em protestos de rua, antecipar comportamentos com base no rastro de dados deixados por cada  habitante em todos esses sistemas.

E, por fim, tais tecnologias propõem ganhos superlativos de eficiência que se traduzem em táticas para extrair o máximo possível de componentes fundamentais do urbano — ou, no jargão, “fazer o ativo suar”. Os exemplos vêm da economia do compartilhamento. Para a Uber, o ideal seria conquistar o mais próximo possível de uma “corrida sem fim”, em que um novo passageiro entra no carro logo que a corrida anterior acaba. O mesmo valeria para o Airbnb: uma “diária infinita”, sem pausas entre um hóspede e outro. Para os autores, há um vínculo pouco explorado entre austeridade e precariedade, por um lado, e a emergência da cidade inteligente, por outro.

A principal crítica ataca a tecnocracia pressuposta nos sentidos usuais de smart city. É como se a técnica substituísse a democracia. Já que as soluções mais eficientes podem ser alcançadas por sistemas de dados e algoritmos, não haveria razão para deliberações na esfera pública. A utopia da cidade em que tudo funciona é acompanhada pela despolitização e pelo controle antecipado de comportamentos.

Mas o livro é também uma proposta para que as cidades retomem sua autonomia — para que sejam cidades rebeldes com soberania digital. E, aqui, “cidades” não significa apenas o executivo municipal, mas principalmente os cidadãos. O livro traz um verdadeiro catálogo de experiências de uso democrático da tecnologia urbana, que servem de inspiração para outras cidades.

O caminho da utopia democrática da cidade inteligente passa necessariamente pela retomada do controle sobre a informação. Para os autores, a primeira decisão smart que uma cidade deve tomar é valer-se de plataformas abertas, com algoritmos e sistemas transparentes e passíveis de controle cidadão. A principal estratégia é a remunicipalização de serviços essenciais. Barcelona é o grande exemplo: a gestão de Ada Colau trouxe o fornecimento de energia de volta para a cidade e encampa a luta pela gestão da água. Morozov e Bria reconhecem que essa é uma estratégia limitada quando se trata de infraestrutura digital, já que as companhias nem sempre estão fisicamente presentes na cidade e nem operam da mesma maneira que a infraestrutura física.

Boa parte das iniciativas públicas para competir com os serviços prestados pelas big techs fracassa em razão da falta de acesso a dados brutos. Uber e Airbnb detêm dados sobre transporte, turismo e locação que as municipalidades não possuem. Transparência, governança coletiva de dados e controle democrático são palavras-chave. A maneira como vivemos em cidades está mudando radicalmente. As utopias inscritas nessas mudanças também são novas. Morozov e Bria não pretendem simplesmente desferir um ataque às cidades inteligentes: querem politizar a utopia, colocando a democracia no centro do debate.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #31 mar.2020 em fevereiro de 2020.