Bianca Tavolari
As cidades e as coisas
Com os pés no chão
Diante de soluções tecnocráticas, Paris Marx questiona centralidade do automóvel individual como ferramenta indispensável da vida moderna
01nov2024 • Atualizado em: 31out2024 | Edição #87 novEm 13 de agosto de 1980, o Wall Street Journal publicou uma entrevista com Steve Jobs, então bastante jovem. De terno, camisa e gravata, vestimenta completamente distinta daquela que viria a adotar alguns anos depois, Jobs explica o que é um computador pessoal e as razões para que as pessoas considerassem adquirir uma máquina daquele porte. “Quando nós inventamos o computador pessoal, nós criamos um novo tipo de bicicleta”, diz o título da matéria. No entanto, a analogia com a bicicleta foi deixada rapidamente para trás nas suas respostas, sendo substituída por outra comparação: andar de trem ou ter um Volkswagen na garagem. A figura do trem é utilizada para caracterizar os computadores empresariais, enquanto o automóvel seria o símbolo análogo ao computador pessoal:
os donos de Volkswagens podem ir aonde quiserem, quando quiserem e com quem quiserem. Os donos de Volkswagens exercem controle pessoal sobre a máquina. […] Basicamente, Steve Wozniak e eu inventamos o Apple porque nós queríamos um computador pessoal. Não só não podíamos pagar pelos computadores que estavam no mercado; aqueles computadores eram também impraticáveis para o uso. Nós precisávamos de um Volkswagen.
Em Estrada para lugar nenhum, Paris Marx retoma essa entrevista de Steve Jobs para uma espécie de gênese da concepção do Vale do Silício sobre como nos transportamos nas cidades. A analogia com o automóvel individual não é gratuita: o carro é uma promessa de liberdade individual, de controle dos próprios caminhos e de produtividade associada à aceleração. Tanto o carro quanto o computador colocam a tecnologia a serviço de decisões individuais de um proprietário, como ferramenta indispensável para lidar com as complexidades da vida moderna. Uma abordagem individual, tecnosolucionista e repleta de promessas falsas.
Imagem e semelhança
Se, em 1980, a conexão entre o desenvolvimento da informática e da tecnologia computacional era relacionada com os automóveis apenas num plano simbólico, o foco do livro está em mostrar como o Vale do Silício passou a se voltar para a mobilidade urbana e para o projeto de moldar cidades inteiras à sua imagem e semelhança.
Depois de reestruturar a forma como nos comunicamos uns com os outros, nos entretemos, compramos bens de consumo e muito mais, as empresas que prosperaram com a expansão da internet para todos os cantos do globo estão, agora, voltando sua mira para o ambiente físico, com enfoque particular no sistema de transporte.
Se o horizonte de Jobs era um Volkswagen, agora estamos diante de investimentos massivos em carros autônomos, táxis voadores, os Teslas elétricos de Elon Musk, serviços de transporte de passageiros como Uber e Lyft, ambos criados em meio à cultura de start-ups de São Francisco.
Tanto o carro quanto o computador colocam a tecnologia a serviço de decisões individuais de um proprietário
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Paris Marx apresenta críticas fortes e contundentes a essa guinada. Em primeiro lugar, ela reflete um fenômeno de “projeção da elite”, em que homens brancos bilionários da tecnologia pretendem resolver o que entendem ser questões “de todo mundo”, mas que são altamente excludentes, voltados para o consumo individual e com o poder de remodelar todo o espaço construído para que possam ser implementados: “O plano da indústria de tecnologia envolve o refazimento de nossos ambientes físicos para que ela possa se beneficiar deles da mesma forma”.
Em segundo lugar, há aqui o mito de que o desenvolvimento tecnológico, por si só, seria capaz de resolver as questões prementes do nosso tempo. Os carros elétricos, por exemplo, despontam não só como uma solução de mobilidade urbana, mas como uma potencial rota de fuga para a crise climática, ao trocar o uso de combustíveis fósseis por energia pretensamente limpa. Marx é explícito ao afirmar que não será possível simplesmente substituir tudo o que era antes movido por combustíveis fósseis por produtos equivalentes alimentados por baterias. Esse movimento exigiria uma extração ainda mais intensa de metais e minerais, como o lítio e o cobalto, concentrados geograficamente em países do Sul Global, cuja extração está longe de poder ser descrita com qualquer atributo como “verde”. O problema não está no combustível que faz os automóveis individuais funcionarem, mas em “como as empresas e governos foram bem-sucedidos na reorientação da vida ao redor do automóvel e, em muitos casos, na destruição de alternativas mais eficientes”.
Manter o foco no transporte individual motorizado perpetua os benefícios de uma elite que sempre foi a principal destinatária das vendas e do uso de carros, não importa se estamos falando de carros movidos a energia limpa ou autônomos. Essas são soluções tecnológicas que mantém a estrutura do problema exatamente no mesmo lugar, privilegiando investimentos em estradas para carros, em estacionamento para carros, com acidentes de trânsito que matam pessoas e geram sofrimento que poderia ser evitado quando não se tem uma visão carrocêntrica do mundo.
Manter o foco no transporte individual motorizado perpetua os benefícios de uma elite destinatária das vendas e do uso de carro
Marx não é inimigo da tecnologia em si mesma, mas defende:
Em última instância, um sistema de transporte mais igualitário e com maior consciência ambiental exigirá a redução do uso de automóveis, independentemente de como eles sejam abastecidos, e a adoção de outras formas de mobilidade que não só produzam menos emissões por pessoa, mas também ofereçam uma rota para a reimaginação de nossas comunidades de um modo que não dependa da abertura de espaço para os carros.
Estrada para lugar nenhum é um manifesto em favor das tecnologias mundanas que passaram pelo teste do tempo, como o ônibus, o trem e a bicicleta. O autor defende que passemos a sonhar com a interrupção da mercantilização e comodificação dos transportes, em direção a um planejamento de cidades centradas na mobilidade coletiva e ativa, bem como no aumento de densidades populacionais, na contramão do modelo norte-americano de criação de subúrbios.
É certo que Marx coloca todas as fichas no Estado — e nos conta muito pouco, para além de alguns exemplos de cidades europeias, sobre como essa autonomia pode ser alcançada. Mas a chave que guia o livro é entender o transporte como um direito — o que não é evidente e não é pouco. Especialmente diante de soluções tecnocráticas high-tech que pretendem eliminar a política e a democracia, questionar a centralidade do automóvel individual motorizado coloca nossos pés de volta no chão.
Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “Com os pés no chão”
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