Bianca Tavolari
As cidades e as coisas
Piloto automático
Fruto de conversa entre jornalista e especialista em planejamento urbano, Movimento é um convite a colocar atuais prioridades de mobilidade em xeque
01dez2024 • Atualizado em: 28nov2024 | Edição #88 dezUma jornalista holandesa que cobria temas urbanos se viu às voltas com uma pauta sobre engarrafamentos. Mais precisamente, sobre soluções de planejamento urbano para diminuir o trânsito, para que as pessoas pudessem chegar mais rápido a seus destinos, sem perder tempo precioso de vida em deslocamentos.
Amsterdã e outras cidades da Holanda são reconhecidas mundialmente pelo uso intensivo de bicicletas — e uma ideia da jornalista era criar rodovias de alta velocidade para ciclistas, conectando diferentes centros urbanos, em uma rede que, se implementada de maneira eficaz, poderia desafogar até mesmo as vias destinadas a automóveis.
Incerta sobre a adequação de sua proposta, ela decide entrevistar um especialista em planejamento urbano, com ênfase em mobilidade. A jornalista era Thalia Verkade e o professor era Marco te Brömmelstroet. A conversa entre eles deu origem a Movimento: como reconquistar nossas ruas e transformar nossas vidas.
O livro é especialmente interessante por apresentar Thalia em uma jornada de conhecimento sobre como as cidades são produzidas, as escolhas que fazemos e o que está implícito nas nossas percepções mais comuns e cotidianas. É, portanto, uma ótima maneira de começar a aprender sobre como nos movimentamos — o que passa pelas nossas percepções sobre o espaço construído e por discussões técnicas e políticas de planejamento, economia urbana e engenharia de tráfego.
Thalia esperava que os termos de sua proposta fossem aceitos, especialmente por pensar em uma solução que envolvia a mobilidade ativa por meio de bicicletas, com todos os componentes de sustentabilidade incluídos. A resposta de Marco à consulta provoca uma grande virada, que dá início ao arco formativo do livro.
A maneira como nos movimentamos não é um assunto de peritos em tráfego, mas de todos nós
Marco não só critíca a linguagem utilizada — “rodovias de alta velocidade” e não simplesmente “ciclovias” —, mas também o pressuposto implícito: a jornalista estava pensando em termos de otimização. Ciclistas seriam transformados em motoristas eficientes, para quem chegar do ponto A ao ponto B é a prioridade máxima. Tudo o que está no meio do caminho entre esses pontos é negativo e precisa ser minimizado.
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Bianca Tavolari
As ciclovias de alta velocidade não pareciam exatamente uma boa ideia sob essa nova perspectiva. Mas não só a proposta era problemática como o próprio objetivo de acabar com engarrafamentos por meio de soluções de eficiência era equivocado.
Ninguém gosta de engarrafamentos. Tampouco Marco te Brömmelstroet os defende ou mesmo aceita manter tudo como está. Mas aqui somos apresentados a um paradoxo: quanto mais infraestrutura de transporte nós construímos, como uma nova faixa em uma autopista, mais engarrafamentos produzimos. Construir mais estradas, pontes, vias expressas, túneis — nada disso irá diminuir o tempo de deslocamento. Em primeiro lugar, porque nova infraestrutura cria incentivos para que as pessoas façam um uso mais intensivo delas, priorizem o carro ou até mesmo passem a morar e a abrir negócios no entorno; o que, por sua vez, volta a afogar o trânsito.
Em segundo lugar, se você tiver um transporte mais rápido — seja em razão da intervenção no ambiente construído, seja pelo desenvolvimento da tecnologia —, as pessoas não vão passar menos tempo no deslocamento. Vão, pelo contrário, se deslocar para mais longe do que já faziam antes, sem economizar tempo. É a “lei do tempo de deslocamento constante e velocidade de viagem”, conhecida como constante de Marchetti. Isso faz com que aumentar capacidade rodoviária funcione como uma espiral, que leva ao mesmo lugar de onde gostaríamos de fugir, um buraco negro de acúmulo de veículos e congestionamento.
Questionar o óbvio
Movimento propõe questionar o que nos parece evidente, como se não tivesse sido por fruto de escolha. A maneira como nos movimentamos na cidade não é apenas um assunto técnico de peritos em tráfego, mas de todos nós. E passa por nos colocarmos algumas perguntas: por que as crianças precisam esperar por uma pausa no trânsito que passa a toda velocidade? Por que escolas não podem ser polos de caminhabilidade e segurança viária? Por que destinamos tanta terra pública e privada a estacionamentos? Por que carros individuais motorizados recebem tantos incentivos? Por que o limite de velocidade de vinte quilômetros por hora é considerado lento em uma rua? Por que em cidades brasileiras usar transporte público é visto como símbolo de inferioridade de classe? Por que normalizamos mortes no trânsito e ainda as chamamos de acidentes? Por que prezamos tanto por velocidade e, ainda assim, aceitamos as mesmas pretensas soluções que não atingem o objetivo prometido?
Para além de acompanhar Thalia em suas descobertas em conversas com professores, especialistas e planejadores urbanos, ao final o livro oferece um guia prático do que fazer para mudar esse quadro. Todas as sugestões e propostas vão na direção de pensar a mobilidade como um bem comum, sem dependência de empresas, com acesso público e igualitário. E é também aqui que o título se torna um convite à ação, para fazer parte de uma organização que coloque as atuais prioridades de mobilidade em xeque.
É verdade que há um fosso nada desprezível entre as cidades holandesas e as brasileiras, que grande parte do que lá se entende como problema não encontra rebatimento aqui. Mas se engana quem acha que não há transposição possível, que o livro não amplia nossos horizontes de imaginação institucional e de transformação mais ampla. As cidades centradas no automóvel estão por todos os lados. Entender as muitas camadas de por que isso é um problema pode ser difícil e desconfortável. Mas é o único caminho se quisermos retomar as ruas como espaço público por excelência.
Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Piloto automático”
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