Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

O custo da economia compartilhada

Airbnb firma parceria com as Olimpíadas e gera debate sobre os impactos da falta de regulação das empresas de compartilhamento

22nov2019

Há poucos dias, o Airbnb anunciou que passaria a integrar o seleto time de empresas que são patrocinadoras oficiais do Comitê Olímpico Internacional, cuja principal atribuição é organizar as Olimpíadas. Uma das principais representantes do que costumamos chamar de “economia do compartilhamento” se junta a gigantes mundiais como Coca-Cola, Visa, Samsung e Intel, seguindo as digitais Alibaba e Atos em sua estratégia de parcerias internacionais de branding.

Megaeventos esportivos vão muito além do entretenimento. Representam uma nova forma de visibilidade do poder, intimamente relacionada a meios tecnológicos de difusão instantânea de imagens e informações. Por oferecerem uma plataforma estratégica para projeção internacional de imagens positivas das cidades-sede, são amplamente disputados por prefeitos e presidentes. Sediar um evento não significa apenas a consolidação de uma cidade como um nó decisivo no fluxo de pessoas e investimentos, mas também o fortalecimento de um posicionamento geopolítico.

O Airbnb passa a fazer parte desta estratégia de projeção em muitos níveis. O contrato de US$ 500 milhões está previsto para durar por nove anos e cinco jogos, incluindo Olimpíadas e jogos de verão e inverno. O acordo envolve o aumento do número de anfitriões da plataforma, que vão hospedar turistas e atletas. Mas, além disso, os atletas das Olimpíadas vão fazer parte do Airbnb experiences: passa a ser possível pagar por uma aula de corrida ou vôlei com seu atleta favorito ou mesmo por um tour pela cidade com um deles. Tóquio, Pequim, Paris, Milão e Los Angeles são as cidades-sede destes eventos até 2028. Coincidentemente, são cidades que representam uma grande fatia do mercado já conquistado pelo Airbnb.

Ruídos

Segundo o anúncio oficial do COI, a parceria foi desenhada “para criar um novo padrão de hospedagem que será uma vitória para as cidades-sede, uma vitória para espectadores e fãs e uma vitória para os atletas”. Em outras palavras, todos sairiam ganhando, win-win situation.

No entanto, o anúncio do patrocínio causou ruídos imediatos. As críticas feitas por Anne Hidalgo, prefeita de Paris, e a saída da associação francesa de hotéis do planejamento dos jogos de verão de 2024 na cidade são expressão de dois conjuntos de questões distintas vinculadas à regulação destas plataformas.

A ideia mais imediatamente associada à economia do compartilhamento é a da disrupção por meio da tecnologia. Plataformas como Uber e Airbnb não teriam inventado nada de muito novo, mas passaram a permitir o uso intensivo de bens antes subutilizados ou mesmo inutilizados. Carros que poderiam ficar diversas horas do dia parados em garagens passam a ser alocados para caronas ou corridas pagas que conectam motoristas e passageiros por meio de aplicativos. Os quartos dos filhos que saíram da casa dos pais podem dar lugar ao uso por parte de residentes temporários, que pagam pela estadia. Tudo isto viria com a desestabilização de mercados tradicionais bem consolidados e, por vezes, pouco inovadores. Geralmente pensamos o Uber em contraposição à rede de táxis e o Airbnb em contraposição à indústria hoteleira.

A reação da associação francesa de hotéis é um sintoma desta oposição que vem se desenhando em muitas cidades ao redor do mundo. O principal ponto de disputa gira em torno de tributos e regras de concorrência. Segundo o argumento dos hotéis, o Airbnb presta serviço de hospedagem, mas sem os mesmos impostos, o que geraria uma vantagem artificial para este competidor no mercado. Segundo o Airbnb, não há que falar em prestação de serviços: a plataforma seria mero intermediário de relações entre indivíduos e, por isto, não teria que pagar os mesmos tributos.

Os megaeventos complicam ainda mais esta equação na medida em que sediar uma Olimpíada ou uma Copa do Mundo também significa ajustar normas jurídicas e regras comerciais de acordo com as exigências do órgão organizador internacional. Uma das condições para entrar na disputa para se tornar cidade-sede é reservar uma porcentagem do estoque de quartos de hotéis disponível na cidade e estipular tarifas previamente acordadas para o evento. A parceria com o Airbnb vai na contramão desta exigência, promovendo um by-pass nos hotéis. A reação da indústria hoteleira francesa não veio sem motivo.

O outro lado

Mas a perspectiva Airbnb versus hotéis conta apenas uma parte da história. Grandes plataformas da economia do compartilhamento não desestabilizam apenas potenciais concorrentes diretos. No caso do Uber, pesquisadores e pesquisadoras já começam a medir os efeitos que o aplicativo tem no transporte público. Sistemas de metrô em grandes cidades já começam a ter dificuldade de manter os subsídios de tarifa dados os baixos preços de Uber e similares. O mesmo acontece com o Airbnb: a plataforma não afeta apenas o turismo, mas também o mercado de locação de longo prazo.

O proprietário de um apartamento tem muitos incentivos para alugar por meio da plataforma, sem se valer de um contrato de locação regular para um residente da cidade. Por meio do Airbnb, é possível fixar preços de diárias, discriminar por datas, não alugar em certos períodos. A flexibilidade é enorme. Além disso, é possível economizar em tributos diante da falta de regulação de taxas de ocupação, impostos sobre serviço e a indefinição do caráter da renda auferida por meio da plataforma.

Em várias cidades do mundo, milhares de unidades estão deixando de ser alugadas para residentes fixos para ser destinadas a hóspedes temporários. A dinâmica é especialmente perversa porque as unidades mais rentáveis são as que estão localizadas em centralidades com infraestrutura e equipamentos urbanos consolidados. Além disso, os usos comerciais têm dominado cada vez mais a plataforma, afastando a ideia original de alugar quartos vazios por pessoas físicas que querem apenas um dinheiro extra para pagar as contas no fim do mês – empresas têm se especializado no aluguel de centenas de unidades inteiras via Airbnb. Na prática, o efeito percebido em cidades como Barcelona, Lisboa, Veneza e Nova York é o aumento do preço dos aluguéis e a expulsão de moradores das áreas centrais das cidades.

A contraposição enrtre Airbnb e mercado de locação de longo prazo está expressa na fala de Anne Hidalgo. Segundo a prefeita, o Airbnb remove um número significativo de unidades habitacionais de Paris, contribuindo para o aumento dos aluguéis e para o déficit de unidades para locação, às custas da população parisiense. A providência imediata será convocar um plebiscito para que os cidadãos da cidade possam decidir sobre a melhor regulação da plataforma.

A parceria entre o COI e o Airbnb é um anúncio em uma grande tela de projeção mundial. Todo anúncio desta magnitude corre apenas um risco: ser um mau anúncio. Para a companhia, trazer conflitos à tona certamente desvia do objetivo de divulgação da marca. Para as grandes cidades, é, antes de tudo, uma oportunidade para discutir democraticamente, com a população, os impactos da falta de regulação das grandes empresas da economia do compartilhamento.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).