Ciências Sociais, Psicologia,

Pra que discutir com Madame Bovary?

Maria Rita Kehl desvenda o bovarismo dos juízes da moral e dos insufladores de heróis, que se acham melhores do que realmente são

22nov2018 | Edição #14 ago.2018

Madame Bovary (1857) foi recebido como uma ofensa à religião e à moral da família — afinal, Emma é uma adúltera que não para de sonhar que o seu lugar no mundo é outro, não o casamento e a maternidade. Obcecada com o consumo e a ascensão social, “tinha necessidade de tirar de tudo uma espécie de benefício pessoal e rejeitava como inútil o que quer que não contribuísse para a satisfação imediata de um desejo de seu coração”. 

Não foi o egoísmo, mas o adultério contumaz, às vezes lascivo, que levou Gustave Flaubert ao tribunal para que declarasse, afinal, quem era Madame Bovary. O fato parecia criar uma confirmação autoperformativa: aqueles que se sentiam tão irrelevantes e medíocres quanto Charles, médico de província incapaz de gerar ambições ou assumir riscos, reconheciam-se nele, exigindo reparação da honra. Ao se reconhecer projetivamente, cada qual realizava o próprio bovarismo, imaginando-se grandioso a ponto de inspirar um personagem literário. 

Mas a consagração clínica do bovarismo não pertence nem ao tempo da jovem apaixonada por um outro mundo nem à reação judicial dos ofendidos: está sintetizada na resposta de Flaubert: “Madame Bovary sou eu”.

Maria Rita Kehl formou-se escrevendo em jornais de resistência à ditadura, mas também escutando o sofrimento social como psicanalista. Sua tese de doutorado, Deslocamentos do feminino, mostra como Madame Bovary pode ser vista como momento crucial da constituição da feminilidade moderna. 

Histeria e história

O desejo de ser outra, o devaneio histérico, era também um sonho histórico: assumir a própria voz e determinação. Mas esse discurso sobre o feminino era produzido por homens, os escritores românticos e realistas: nele as mulheres podiam se reconhecer ali onde estavam, e os homens se confirmar ali onde já não eram. 

A fórmula do bovarismo levou Maria Rita a trabalhos como Ressentimento e O Tempo e o Cão, nos quais examina a situação social de onipotência do outro e a situação clínica da depressão como apressamento subjetivo imposto pelo outro. Assim como em Sobre ética e psicanálise, o humor, a crítica social e a literatura não estavam ausentes. A partir da experiência na Comissão Nacional da Verdade e na Escola Florestan Fernandes, em Guararema (SP), atendendo militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ela fez do bovarismo uma chave diagnóstica para ler o Brasil. 

Bovarismo brasileiro reúne textos de diferentes momentos, mas sustenta uma tese que ajuda a entender a nossa reviravolta à direita, bem como a emergência de um novo tipo de ressentimento e violência. 

O primeiro movimento consiste em inverter o bovarismo feminino francês, sobredeterminado por uma posição de asfixia desejante, em bovarismo masculino brasileiro, representado pelo personagem machadiano Rubião. Tendo herdado a fortuna do filósofo Quincas Borba, criador do humanitismo, ao preço de se manter como mero tutor de seu cachorro homônimo, Rubião vai de Barbacena ao Rio para realizar o seu destino bovarista: tornar-se político, um herói público, invejado — mas, na verdade, reduzir-se a alguém usado pelos verdadeiros políticos, exploradores das ilusões alheias, cujo objetivo era fazê-lo retornar à miséria.

Emma Bovary inspirou um quadro psicopatológico descrito por Jules Gautier em 1892, o bovarismo. A psicopatologia moderna importou descrições da ficção, da filosofia e da antropologia: a melancolia dos escritos em Aristóteles, os sádicos e masoquistas em Krafft-Ebbing, as obsessões e suas purificações cristãs, as místicas histéricas de Janet, sem falar no recurso onipresente a romances familiares e sexualidade infantil em Freud. 

Sem entender a linguagem do sofrimento nem descrever sua gramática de reconhecimento jamais entenderemos a gênese social dos sintomas psicológicos. O bovarismo é sinônimo daquele que se acha mais do que realmente é: o autodidata que se acredita inventor de teorias revolucionárias, a senhora interiorana que vive como se estivesse nos salões europeus, aquele que nega a realidade evadindo-se para um mundo de impostura e denúncia. 

Como toda psicopatologia, o bovarismo não cria nada de novo ou estranho ao humano; no caso, o desejo moderno de ser outro, de tornar-se alguém à altura dos desejos que nos extrapolam e negam a nossa realidade atual. O bovarista só não é moderno por um detalhe: ele acredita que já é aquilo em que gostaria de se transformar. Cria para si uma espécie de destino que faria da sua vida a trajetória de consagração do que já estava escrito nas estrelas. 

Eis a diferença entre o batalhador que consegue planejar o futuro, investir na educação ou em um pequeno empreendimento, e o jovem arrogante das classes médias que acredita merecer todo o poder e toda a glória por direito divino, e que a sua start up lhe trará o primeiro milhão assim que todos se derem conta de quem ele é. Por isso, o bovarista está prometido para o ressentimento e para o exibicionismo pueril, assim como para o sentimento de déficit de reconhecimento, que degenera em violência ostensiva. 

Examinando as origens do samba, Maria Rita Kehl mostra como também há antídotos antibovaristas

O segundo movimento do livro consiste em reconstruir o bovarismo nas formas religiosas e musicais, na cultura de massas da TV. Examinando as origens do samba nos morros e nas casas cariocas da Pequena África, na virada do século 20, Maria Rita mostra como também há antídotos antibovaristas. Ela procura uma figura entre o negro desempregado e humilhado, que tem a vida invadida pelo espaço público, e o branco policial, representante ou coligado da farsa institucional de um Estado apossado pelos interesses privados. 

Essa figura é o malandro, o autor de sambas errante e boêmio, que vive de pequenos arranjos, mas não de golpes. A experiência comunitária da aurora do samba, assim como a vida nos acampamentos do MST, trazem consigo a vocação de dispositivos antibovaristas. A miséria anômica induzida por um estado de guerra de todos contra todos, assim como o apossamento do Estado por aquele que se acredita muito mais do que é, apenas porque pode exercer seu pequeno poder, encontra sua protossolução afetiva e solidária do antigo matuto. 

O malandro tem personalidade sensível, não é uma farsa composta por bens de consumo cultural para humilhar ou exibir. Sobreviveu à escravidão e ao desemprego, não sonha em subir na vida e embranquecer, revertendo o passado de oprimido em opressor. É o oposto do marido ofendido, consumido pela razão judicial, sedento por purgar a corrupção.

O terceiro tempo é quando podemos dizer “Bovary sou eu!”, empenhados em reescrever e reeditar esse sintoma nacional, feito da farsa institucional dos juízes da moral, insufladores de heróis, herdeiros da escravidão, síndicos de condomínio que já vivem em Miami. Contra isso, Maria Rita nos traz o trajeto clínico e ético de recuperação do tamanho de si e da capacidade de instaurar um novo lugar, vivido por um brasileiro comum. Sem a negação dos obstáculos da realidade nem da sua textura de contradições, acompanhamos o relato pungente do atendimento psicanalítico de Manuel, o Caroço, alcoolista, analfabeto, perdido de sua família, deixado pela esposa, infantilizado pelos que o cercam. 

A construção do caso de Manuel nos mostra como a boa clínica é crítica social feita por outros meios. Ali não se veem os perigos do reforço à alienação de massa, da doutrinação de pacientes, muito menos o puro estudo cirúrgico e higienista de uma técnica autônoma em relação à ética na qual ela se realiza. Não há militância nem identificação idealizadora, apenas a escuta transformativa desse fator de conciliação e reconhecimento: o sofrimento. 

Maria Rita Kehl é precursora de um movimento nacional de deslocamento da psicanálise para o espaço público, envolvendo clínicas abertas, ocupação de projetos de saúde pública e dispositivos em saúde mental. A ela devemos a abertura de caminhos e a coragem de ser antibovarista num momento em que a psicanálise ainda desconhecia sua própria brasilidade. 

Quem escreveu esse texto

Christian Dunker

Psicanalista, escreveu Reinvenção da intimidade (Ubu).

Matéria publicada na edição impressa #14 ago.2018 em agosto de 2018.