Crítica Literária,

Os amigos (da onça) de Machado de Assis

O segundo volume de 'Escritor por escritor' reúne artigos sobre o bruxo do Cosme Velho escritos a partir de 1939

22abr2020

Em 1939, Graciliano Ramos escreveu um breve ensaio, de quatro páginas, chamado "Os amigos de Machado de Assis". Quase sessenta anos depois, em 1998, o escritor Josué Montello publicou um livro com mais de quatrocentas páginas intitulado os Os inimigos de Machado de Assis. Nos dias de hoje, a desproporção causa espanto, porque temos a impressão de que os amigos superam largamente os inimigos. O segundo volume de Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares, de Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn, mostra que o bruxo do Cosme Velho de fato tem mais amigos do que inimigos. Mas alguns amigos são pouco calorosos. 

O próprio Graciliano, por exemplo, afirma que "somos todos mais ou menos amigos dele". Mas é evidente que ele "não será nunca um artista popular": escrevia seus romances "para um número diminuto de leitores", falava pouco e se encolhia diante dos outros: "Encurtando-se, poupando suscetibilidades, tentou igualar-se a outros, que lhe perdoaram a inteligência". Em uma de suas cartas, Graciliano observou que Machado parecia ser "um sujeito de maus bofes e bastante covarde”.

Críticas a seu comportamento pessoal são frequentes. Como assinalam os organizadores da coletânea, "nos textos escritos durante a Segunda Guerra, tempo de urgência de posicionamento e tomada de partido, surge a inevitável cobrança pela maior participação de Machado no seu tempo, como a feita por Jorge de Lima" – que o julgava um "homem medroso": "Era um homem esquivo e misantropo a seu jeito, incapaz de frequentar porões revolucionários em que se conspirasse contra o regime". Esses reparos, contudo, não cessaram após a Segunda Guerra Mundial.

Machado é frequentemente comparado com Lima Barreto, sempre sob uma luz desfavorável, como neste artigo de Rachel de Queiroz: “Sendo justamente ambos mulatos, em ambos o complexo racial foi o fator preponderante de sua grandeza e de sua tragédia. Machado, mais egoísta, mais forte intimamente, de certa maneira mais implacável, conseguiu aparentemente vencer, superar o complexo […]. Jamais tratou de criar o seu lugar ao sol como homem de cor que o era. Procurou conseguir, e realmente conseguiu fazer com que, em virtude dos seus méritos excepcionais, o Brasil inteiro lhe ignorasse a cor […]. Já com Lima Barreto, o caso foi muito outro. Ele queria se impor como negro, como mulato; e não ‘apesar’ de mulato. Como figura humana, por isso mesmo se eleva muito acima de Machado de Assis”.

Jorge Amado também o ataca ferozmente, lembrando que ele fez demasiadas concessões aos preconceitos da época para assegurar sua ascensão social: "Custou-lhe esforço para chegar a branco e a expoente das classes dominantes, mas tendo lá chegado não abriu mão de nada a que tinha direito". Machista, ele barrou o ingresso da escritora Júlia Lopes de Almeida na Academia Brasileira de Letras, colocando em seu lugar “o marido dela, Filinto d’Almeida, escrevinhador de pouca valia. A romancista achou, com razão, que o consorte precisava bem mais que ela dos bordados da Academia, cedeu-lhe a cadeira, a ela bastavam os romances". 

Enquanto os autores mais à esquerda lamentam sobretudo sua conduta ética, os escritores conservadores atacam seu estilo. Citado na introdução, Guimarães Rosa critica sua artificialidade: “Não pretendo mais lê-lo, por vários motivos: acho-o antipático de estilo, cheio de atitudes para ‘embasbacar o indígena’; lança mão de artifícios baratos, querendo forçar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura. Há trechos bons, mas mesmo assim inferiores aos dos autores ingleses que lhe serviram de modelo”. E por aí vai.

Cassiano Ricardo não fica atrás: “Sua prosa não é apenas antibrasileira no apuro clássico de um português que se escorrega já se limpa bem de todas as manchas da terra que marcam a raiz dos nossos vocábulos mais toscos e amorosos. Faltam-lhe a cor, a imagem e o ritmo que são sinais psicológicos de toda a linguagem brasileira […]. Sobram-lhe harmonia, polidez, segunda intenção: falta-lhe a seiva gostosa do sentimento. Substituiu ele a desconfiança pela dúvida, pelo ceticismo. A dor brasileira é substituída, também, nos seus livros, por uma dor intelectual sem calor humano e sem sangue”.

Em seu conjunto, o livro é bastante favorável a Machado ou, mais precisamente, à sua obra madura: se nas primeiras décadas do século ainda eram frequentes as referências a suas poesias e a seus romances anteriores a 1880, após 1939 “se nota um interesse crescente e cada vez mais exclusivo pela prosa, especialmente pelos romances e contos publicados depois de Memórias póstumas de Brás Cubas, tomado como um inequívoco divisor de águas”, apontam os organizadores. Alguns críticos, como Augusto Meyer e Lúcia Miguel Pereira, passaram "a defender a primazia do contista sobre o romancista".

Mais recentemente, suas crônicas foram trazidas para o primeiro plano, revelando – nas palavras de Joel Silveira – "um novo Machado, homem do seu tempo e do seu mundo, partícipe de controvérsias, jornalista de combate e cidadão de atitude clara em face dos mais importantes problemas do Brasil de sua época. Não se diga mais que ele foi indiferente ao abolicionismo e à República. Não o foi, prova a vasta documentação (artigos principalmente, por ele publicados) recolhida por Magalhães Júnior". O artigo de Joel saiu em 1955, numa década na qual Machado consolidou seu status de clássico e passou a ser comparado aos grandes nomes da literatura mundial.

Quem escreveu esse texto

Mauricio Puls

É autor de Arquitetura e filosofia (Annablume) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva), e editor-assistente da Quatro Cinco Um.